Mas não posso deixar de lembrar outro ponto fundamental que influiu certamente na formação da doutrina proposta por AK como "doutrina espírita": são as idéias dele mesmo, de Kardec e de seus colaboradores "encarnados". Farei apenas as seguintes anotações e observações:
1) Sabe-se hoje que as idéias reencarnacionistas surgiram pela primeira vez na França pelos anos 1830-1848, em certos ambientes socialistas, e intimamente vinculadas com os princípios do evolucionismo então em moda. Seus primeiros fautores foram Charles Fourier e Pierre Leroux, ambos socialistas, que recorreram à idéia da pluralidade das existências precisamente para explicar assim o problema das desigualdades sociais. Este argumento será depois, nas obras de Kardec, o mais forte e é ainda hoje, entre nossos espíritas, o mais freqüentemente invocado para "demonstrar" a realidade das reencarnações. Ora, foi deste
ambiente socialista que saíram os primeiros adeptos do movimento espírita francês. René Guénon mostra isso nas pp. 31-39 de seu livro L' erreur spirite (Paris, 1952) e nas pp. 116ss. do Le théosophisme. No ano de 1854, quando Kardec tomava os primeiros contatos com as mesas girantes, foram publicados mais dois livros reencarnacionistas: Terre et dei, de Jean Reynaud, e Pluralité des existences de l'dme, de Pezzani. Assim, dois anos depois da publicação de O livro dos espíritos, em 1859, observava o Dr. Dechambre na "Gazette Hebdomadaire de Médicine et de Chirurgie", num artigo sobre "La Doctrine Spirite", que os instrutores invisíveis do Sr. Kardec não tinham necessidade de conversar nos ares com o espírito de Porfírio: bastava-lhes conversar por alguns instantes com o Sr. Pierre Leroux, mais fácil de encontrar, ou ainda com
Fourier, que com muito prazer lhes teria ensinado que nossa alma revestirá um corpo cada vez
mais etéreo à medida que irá passando pelas oitocentas existências. . .
2) Também os dois dramaturgos Victorien Sardou e Eugene Nus pertenciam ao círculo de Kardec. Em Le merveilleux spirite nos conta Lucien Roure: "Era no momento das primeiras experiências do espiritismo em Paris. Sardou (futuro grande colaborador de AK) devorava os livros de filosofia e de metafísica, ocupava-se de astronomia, estudava e perfilhava as teorias de Jean Reynaud. Foi no salão da Sra. Japhet que ele encontrou AK. O próprio Sardou confessou: 'Quando, de comum acordo com AK, pedimos ao espírito presente que determinasse a base do dogma espírita, fui eu que, guiado por minhas leituras, restabeleci o sentido das respPostas malinterpretadas ou obscuras do espírito; e assim, em três sessões, pude ditar o sumário da doutrina que AK, depois, devia desenvolver'. E: 'Eu lia, então, muito os livros ocultistas. E quando havia uma lacuna, eu é que redigia as mensagens"'.
3) Outro colaborador foi o astrônomo Camille Flammarion, que foi mesmo um dos médiuns de Kardec. Mais tarde será espírita menos convicto e entusiasmado. Como médium escreveu as famosas mensagens sobre os astros e a cosmogonia, que estão em A gênese de AK.
Muitos anos depois escreverá: "Eu próprio era médium e AK publicou em seu livro A gênese, as issertações que eu escrevi. Era o reflexo do que eu sabia, daquilo que nós pensávamos nessa época sobre os planetas, sobre cosmogonia etc. E os espíritos nada me ensinaram" (cf. "Annales Politiques et Parlamentaires", 9 de julho de 1899).
4) Alexander Aksakof, no artigo intitulado "Researches on the Historical Origin of the Reincarnation Speculations of French Spiritualists" (Investigações sobre a origem histórica da filosofia reencarnacionista no espiritismo francês), publicado na revista The Spiritualist, 13-8- 1875, pp. 74-75, afirma que em 1873 entrevistou a sonâmbula Celina Japhet (nome verdadeiro: Bequet), que muito contribuiu na confecção de O livro dos espíritos de AK. Ela revelou então que já era sonâmbula natural desde pequena e que em 1845 foi a Paris, onde conhecera o magnetizador Roustan, ficando ela então sonâmbula profissional sob o controle de Roustan, dando "receitas médicas sob a direção espiritual de seu avô, que fora médico"; e que "desta maneira, em 1846, lhe foi comunicada a doutrina da reencarnação pelos espíritos de seu avô, de Sta. Teresa e de outros". Aksakof anota então que "pode ser interessante observar que, quando o poder sonambúlico de madame Japhet foi desenvolvido sob a influência mesmérica do Sr. Roustan, este já acreditava na pluralidade das existências terrestres". Madame Japhet lhe revelou também que foi membro do círculo espírita de Paris de 1849 até 1870; e que o círculo fazia reunião duas vezes por semana, participando também Victorien Sardou; e que pouco depois ela se tornara médium escrevente e que a maior parte de suas comunicações foram obtidas desta maneira; e que "em 1856 ela se encontrara com o Sr. Denizard Rivail, que lhe fora apresentada por Victorien Sardou. Ele (Rivail) correlatou a matéria com numerosas questões, coordenando tudo em ordem sistemática e então publicou O livro dos espíritos, sem mesmo
mencionar o nome de madame C. Japhet, muito embora três quartas partes do livro tenham sido dadas através da mediunidade dela. O resto foi obtido de comunicações pela madame Bodin, que pertencia a um outro círculo espírita. Depois da publicação de O livro dos espíritos...ele abandonou o círculo (de madame Japhet) e organizou outro em sua própria casa, sendo médium M. Roze".
Nas Obras póstumas, p. 242, AK fala desse encontro: "Em 1856, freqüentei ao mesmo tempo as reuniões espíritas que se celebravam à rua Tiquetone, em casa do Sr. Roustan e senhorita Japhet, sonâmbula. Eram sérias essas reuniões e se realizavam com ordem. ... Estava concluído, em grande parte, o meu trabalho e tinha as proporções de um livro. Eu, porém, fazia questão de submetê-lo ao exame de outros espíritos, com o auxtíio de diferentes médiuns.
Lembrei-me de fazer dele objeto de estudo nas reuniões do Sr. Roustan. Ao cabo de algumas sessões, disseram os espíritos que preferiam revê-lo na intimidade e marcaram para tal efeito certos dias nos quais eu trabalharia em particular com a Srta. Japhet, a fim de fazê-Io com mais calma..."
5) Não esqueçamos também que AK, filho de pais católicos, foi educado sob a tutela de Pestalozzi, que acreditava na possibilidade de encerrar o fato religioso nos limites da razão.
Certos princípios do protestantismo e do racionalismo o acompanharam desde a escola de Pestalozzi. Mais tarde tornou-se maçom. E é sabido que a filosofia maçônica é essencialmente liberal e naturalista. E de todos estes princípios encontramos um eco fiel na doutrina "codificada" por AK.
A doutrina espírita na verdade é pouco "espírita": é humana, excessivamente humana; é apenas kardecista...
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Fonte:
Espiritismo – orientação para católicos
Frei Boaventura Kloppenburg
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