O ALÉM CRISTÃO

Uso aqui a palavra além para designar "o outro mundo", "o que vem após a morte", o "além-túmulo", o "transcendente". Temos a impressão que falar do além nos leva ao reino da fantasia, da imaginação, do devaneio, da pura elucubração, ou até do fantasmagórico, do imaginário, do ilusório, do irreal, como se fôssemos levados ao mundo dos fantasmas, da assombração e das visões patológicas.
Mas todos vivemos preocupados com as questões do além. O recente Concílio Vaticano II, na Constituição Gaudium et Spes, de 1965, descreve assim no n. 10 as interrogações mais profundas do gênero humano:
- "Na verdade, os desequilíbrios que atormentam o mundo moderno se vinculam com aquele outro desequilíbrio mais fundamental radicado no coração do homem. Com efeito, no próprio homem muitos elementos lutam entre si. Enquanto, de uma parte, porque criatura, experimenta-se limitado de muitas maneiras, por outra parte, porém, sente-se ilimitado nos seus desejos e chamado a uma vida superior. Atraído por muitas solicitações, é ao mesmo tempo obrigado a escolher entre elas renunciando a algumas. Pior ainda: enfermo e pecador, não raro faz o que não quer, não fazendo o. que desejaria (cf. Rm 7,14ss.). Em suma, sofre a divisão em SI mesmo, da qual se originam tantas e tamanhas discórdias na sociedade. Certamente, muitíssimos, cuja vida se impregnou de materialismo prático, afastam-se da percepção clara
deste estado dramático, ou, oprimidos pela miséria, são impedidos de considerá-la. Muitos pensam encontrar tranqüilidade nas diversas explicações do mundo que lhe são propostas.
Outros, porém, esperam encontrar uma verdadeira e plena libertação da humanidade somente pelo esforço humano. Estão persuadidos de que o futuro reino do homem sobre a terra haverá de satisfazer todos os desejos de seu coração. Não faltam os que, desesperados do sentido da vida, louvam a audácia daqueles que, julgando a existência humana desprovida de qualquer significado peculiar, esforçam-se por lhe atribuir toda significação só do próprio engenho. 
Contudo, diante da evolução atual do mundo, cada dias são mais numerosos os que formulam perguntas primordialmente fundamentais ou as percebem com nova acuidade. O que é o homem? Qual é o significado da dor, do mal, da morte que, apesar de tanto progresso conseguido, continuam a subsistir? Para que aquelas vitórias adquiridas a tanto custo? O que pode o homem trazer para a sociedade e dela esperar? O que se seguirá depois desta vida terrestre?"
E o Concílio indica pistas para uma resposta:
- "Acredita a Igreja que Cristo, morto e ressuscitado para todos, pode oferecer ao homem, por seu espírito, a luz e as forças que lhe permitirão corresponder à sua vocação suprema. Ela crê que não foi dado aos homens sob o céu outro nome no qual seja preciso se salvarem (cf. At 4,12). Acredita igualmente que a chave, o centro e o fim de toda história humana se encontra no seu Senhor".
Dispomos, por conseguinte, de uma resposta cristã para os problemas do além. Neste sentido uso aqui a expressão "além cristão".

1. JESUS, O REVELADOR DO ALÉM
A especulação da limitada inteligência humana pouco poderá dizer a respeito daquilo que acontece depois da morte. Os que já passaram pela experiência da morte permanecem calados.
Só mesmo se alguém de fato viesse do além, poderia também dar-nos informações sobre a vida depois da morte.
Mas Deus não nos deixou desamparados e entregues unicamente à luz de nossa razão ou de nossas experiências pessoais. O Pai eterno tanto amou os homens que lhes enviou seu filho unigênito para que todo aquele que nele crer tenha a vida eterna: E o Verbo se fez homem e habitou entre nós: "Para isso nasci e para isso vim ao mundo: para dar testemunho da verdade. 
Quem é da verdade escuta a minha voz" (10 18,37). Jesus sabia "que o Pai tudo colocara em suas mãos e que ele viera de Deus e a Deus voltava" (10 13,3). "Saí do Pai e vim ao mundo" (10 16,28).

Jesus tinha, pois, condições para falar sobre o além. 
Ele se apresentou aos homens como Mestre enviado pelo Pai. "Vós me chamais de Mestre e de Senhor e dizeis bem, pois eu o sou" (10 13,13). "Um só é vosso guia, Cristo" (Mt 23,10). Com tranqüila consciência podia afirmar: "Minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou. Se alguém quer cumprir sua vontade, saberá se minha doutrina é de Deus ou se falo por mim mesmo" (10 7,16-17).
Jesus não falou por si. É um ponto no qual insistiu muitas vezes. Jesus diz o que viu e ouviu junto ao Pai (10 9,37). Ele tem consciência de transmitir a palavra e a doutrina do Pai: 
"Não falo por mim mesmo, mas o Pai, que me enviou, me prescreve o que devo dizer e de que
devo falar" (10 12,49).
Esta é, propriamente, a grande revelação. "A palavra que ouvis não é minha, mas do Pai que me enviou" (10 14,24). Jesus pôde mesmo dizer, na última noite: "Tudo o que ouvi do Pai eu vos dei a conhecer" (10 1,5-15).
"Se permanecerdes na minha palavra, sereis em verdade meus discípulos e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará" (10 8,31-32). O que neste texto se promete aos discípulos de Cristo é a liberdade por meio do conhecimento da realidade divina. Jesus quer dizer que o conhecimento da realidade divina, enquanto revelada ao homem, faz os homens livres, porque os afasta da sujeição à "carne", ao "mundo" ou ao "de abaixo". Quando Jesus anuncia: "Faleivos a verdade que ouvi de Deus" (10 8,34), declara que aquilo que ele ensina é a verdade, a revelação da realidade eterna e daquilo que acontecerá depois da morte.
Antes de deixar o mundo e voltar ao Pai, Jesus transmite aos apóstolos - para isso os havia escolhido e preparado - a mesma missão que ele havia recebido do Pai: "Como tu (Pai) me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo" (10 17,18). E depois da gloriosa ressurreição, solenemente declara: "Como o Pai me enviou, também eu vos envio" (10 20,21). E mais imperativo ainda: "Toda a autoridade sobre o céu e a terra me foi entregue. Ide, pois, e ensinai todas as gentes... ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei" (Mt 28,18); "aquele que crer e for batizado será salvo; o que não crer será condenado" (Mc 16,16).
Como Cristo foi mestre, os apóstolos deviam ser mestres. Para isso receberão uma ajuda especial de Deus: "O Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, é que vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos disse”(10 14,26); ele "estará sempre convosco" (Jo 14,16). Ele é o "Espírito da verdade" (Jo 14,17; 15,26). "Quanto vier o Espírito da verdade, ele vos conduzirá à verdade plena, pois não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido... Ele receberá do que é meu e vos anunciará" (Jo. 16,13-14).
O processo, pois, é este: o Pai envia o Filho e Jesus ensina o que o Pai lhe ordenou. Cristo envia os apóstolos e estes transmitem o que Cristo lhes ensinou. "Em verdade, em verdade, vos digo: quem recebe aquele que eu enviar, a mim recebe e quem me recebe, recebe aquele que me enviou" (10 13,20). Por isso valerá este princípio: "Quem vos ouve a mim ouve, quem vos despreza a mim despreza, e quem me despreza, despreza aquele que me enviou" (Le 10,16). E este outro: "Tudo quanto ligardes na terra será ligado no céu e tudo quanto desligardes na terra será desligado no céu" (Mt 18,18). Como Cristo, também os apóstolos deverão ser "a luz do mundo" (Mt 5,14), o "sal da terra" (Mt 5,12). E como são julgados aqueles que não querem receber as palavras de Cristo, serão condenados igualmente os que não querem receber os ensinamentos dos apóstolos (Mc 16,16).
O prometido Espírito da verdade não viria apenas 18 séculos depois, com o advento do espiritismo, para manifestar-se através do sr. Hippolyte Uon Denizard Rivail ("Allan Kardec"). 
O próprio Jesus, depois de sua gloriosa ressurreição, deu aos apóstolos esta instrução: "Eis que vos enviarei o que meu Pai prometeu. Por isso, permanecei nesta cidade até serdes revestidos da força do alto" (Lc 24,49). E pouco antes de sua ascensão tornou a insistir: "O Espírito Santo descerá sobre vós e dele recebereis força. Sereis então minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria, e até os confins da terra" (At 1,8).
Quando Jesus, depois de sua ascensão, retomou ao Pai, veio o Espírito Santo, no dia de pentecostes, como lemos no capítulo II dos atos dos apóstolos. E no discurso que então proferiu, são Pedro explicou assim o acontecimento de Pentecostes: "E agora, exaltado pela direita de Deus, Jesus recebeu do Pai o Espírito Santo, objeto da promessa, e o derramou. É isto o que vedes e ouvis" (At 2,33).
Começou então a vida da Igreja. Ela terá a árdua tarefa de conservar e anunciar a todos os homens, até o fim dos tempos, o que Jesus ensinara em nome do Pai. Realiza-se assim a promessa de Jesus: "Eis que eu estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos" (Mt 18,20).
A Igreja cumprirá sua missão, confortada certamente pela força do alto e sempre assistida pelo espírito da verdade, o consolador, mas em todo o tempo mediante seres humanos, frágeis e limitados por sua natureza. A já bimilenar história da Igreja é rica na descrição destas vicissitudes humanas, de maior ou menor fidelidade, com aflições e dificuldades internas e externas, embora entre sombras, porém com fidelidade substancial. Ela permaneceu sempre a esposa fiel do Senhor (Ef 5,26).
Por tudo isso temos ainda hoje a tranqüila certeza de recebermos dela a autêntica verdade cristã. Procurarei resumir o que a Igreja nos ensina a respeito da morte e da vida depois da morte.

2. A DOUTRINA CRISTÃ SOBRE A MORTE

O último concílio ecumênico, chamado Vaticano II, de 1962 a 1965, resume a fé cristã sobre o mistério da: morte com estas palavras que encontramos na constituição Gaudium et spes n. 18b:
- "Enquanto toda a imaginação fracassa diante da morte, a Igreja contudo, instruída pela revelação divina, afirma que o homem foi criado por Deus para um fim feliz, além dos limites da miséria terrestre. Mais ainda. Ensina a fé cristã que a morte corporal, da qual o homem seria subtraído se não tivesse pecado (cf. Sb 1,13; 2,23-24; Rm 5,21; 6,23; Tg 1,15), será vencida um dia, quando a salvação perdida pela culpa do homem lhe for restituída por seu onipotente e misericordioso salvador. Pois Deus chamou e chama o homem para que ele, com a sua natureza inteira, dê sua adesão a Deus na comunhão perpétua da incorruptível vida divina. Cristo conseguiu esta vitória, por sua morte, libertando o homem da morte e ressuscitando-o para a
vida (cf. 1Cor 15,56-57). Para qualquer homem que reflete, apresentada com argumentos sólidos, a fé dá-lhe uma resposta à sua angústia sobre a sorte futura. Ao mesmo tempo oferece a possibilidade de comunicar-se em Cristo com os irmãos queridos já arrebatados pela morte, trazendo a esperança de que eles tenham alcançado a verdadeira vida junto de Deus". 
Este texto conciliar é denso e rico. É necessário analisá-lo, frase por frase, e meditar com atenção sobre cada afirmação. As seguintes informações podem completar nossos conhecimentos sobre a morte e a vida posterior.

3. A MORTE NÃO É O FIM DE NOSSA EXISTÊNCIA
Jesus proclama solenemente: "Quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E quem vive e crê em mim jamais morrerá" (10 11,25-26).
O apóstolo Paulo assim orienta os tessalonicenses, em sua primeira carta: "Irmãos, não quero que ignoreis o que se refere aos mortos, para não ficardes tristes como os outros que não têm esperança. Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também, os que morreram em Jesus, Deus há de levá-los em sua companhia... Estaremos para sempre com o Senhor. Consolaivos, pois, uns aos outros com estas palavras" (lTs 4,13-14.17-18).
A tradição cristã considera o dia da morte como "dies natalis", o dia do nascimento para a vida eterna. No prefácio dos defuntos canta a Igreja:

"ó Pai, para os que crêem em vós
a vida não é tirada, mas transformada,
e, desfeita a nossa habitação terrena,
nos é dada, nos céus, uma eterna mansão".

Com efeito, na última noite revelou Jesus aos apóstolos: "Na casa de meu Pai há muitas moradas, e quando eu me for e vos tiver preparado um lugar, virei novamente e vos levarei comigo, a fim de que, onde estiver eu, estejais também vós" (10 14,2). Era uma esperança que fazia exclamar a são Paulo: "Desejo morrer e estar com Cristo" (FI 1,23). Toda a expectativa dos primeiros cristãos se apoiava nesta promessa de Jesus (cf. 1Ts 4,16ss.; 1Cor 4,5; 11,26; 16,22; Ap 22,17.20; 110 2,28). "Felizes os que morrem no Senhor. Descansam agora de seus trabalhos, pois suas obras os acompanharão" (Ap 14,13).
Jesus nos revela que, no Juízo Final, ele dirá, como juiz, aos que estiverem de seu lado direito: "Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do mundo" (Mt 25,34). Em outro lugar explica: "Os justos brilharão como o sol no Reino de seu Pai" (Mt 13,43).
Por tudo isso a Igreja reza em sua liturgia pelos defuntos: "Senhor, que a luz eterna os ilumine no convívio dos vossos santos, porque sois bom. Dai-lhes, Senhor, o repouso eterno e brilhe para eles a vossa luz no convívio dos vossos santos".

4. SOMOS DESTINADOS À VIDA ETERNA

É impressionante o número de vezes em que o divino Mestre Jesus fala da vida "eterna", anunciando uma vida interminável depois da morte. Tendo multiplicado os pães, ele dá ao povo esta grave exortação: "Trabalhai, não pelo alimento que perece, mas pelo alimento que perdura até a vida eterna, alimento que o Filho do Homem vos dará" (10 6,27). Pouco depois dirá mais concretamente: "Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente" (10 6,51).
Todo este modo de falar de Jesus só é inteligível se admitimos em nós um princípio vital imortal chamado "alma". Jesus mesmo usa esta palavra quando anuncia: "Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma" (Mt 10,28). 
A seriedade da vida cristã e suas múltiplas exigências de sacrifício e dedicação só têm sentido nesta suposição. Por isso afirmava são Paulo: "Se temos esperança em Cristo tãosomente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens" (1 Cor 15,19). 
Daí a constante e firme doutrina da Igreja sobre a imortalidade da alma, repetida também pelo Concílio Vaticano II quando diz: "Reconhecendo em si mesmo a alma espiritual e imortal, longe de se iludir por uma representação que dependeria somente das condições físicas e sociais, o homem atinge a verdade em toda a sua profundeza" (OS 14b). A Carta da Congregação para a Doutrina da Fé (de 17-5-1979), sobre algumas questões referentes à escatologia, resume a doutrina da Igreja com estas palavras:
- "A Igreja afirma a sobrevivência e a subsistência, depois da morte, de um elemento espiritual, dotado de consciência e de vontade, de tal modo que o eu humano subsista, embora entrementes careça do complemento do seu corpo. Para designar este elemento, a Igreja emprega a palavra alma, consagrada pelo uso que dela fazem a Sagrada Escritura e a Tradição. 
Sem ignorar que este termo é tomado na Bíblia em diversos significados, ela julga, não obstante, que não existe qualquer razão séria para o rejeitar e considera mesmo ser absolutamente indispensável um instrumento verbal para sustentar a fé dos cristãos" (n. 3). 
Observe-se a insistência neste ponto: mesmo separada do corpo ("embora entrementes careça do complemento do seu corpo"), a alma tem consciência e vontade. É doutrina constante da Igreja que as almas dos falecidos não precisam esperar a ressurreição final para terem o uso da inteligência e da vontade. O papa Bento XII fez neste sentido uma definição explícita na Constituição Benedictus Deus de 29-1-1336.

5. A MORTE É O FIM DO ESTADO DE PROVAÇÃO

Nesta vida terrestre somos caminhantes. Sentimo-nos "estrangeiros e peregrinos nesta terra" (Hb 11,13). Como cristãos, unimo-nos aos que "aspiram a uma pátria melhor, isto é, a uma pátria celestial" (Hb 11,16). "Não temos aqui embaixo cidade permanente, mas estamos à procura da cidade que está para vir" (Hb 13,14). Em outras palavras: depois desta vida temporal virá a vida eterna. A morte é o momento divisório das etapas em que, de maneira radical, se divide a vida humana: a do tempo de provação e a da eternidade de retribuição. 
A carta aos hebreus resume a pregação bíblica sobre a morte com estas palavras: "Está decretado que os homens morram uma só vez; depois do que vem o julgamento" (9,27). 
Em 2Cor, são Paulo escreve:
- "Por isto (por causa da certeza da ressurreição diante do temor da morte) não nos deixamos abater. Pelo contrário, embora em nós o homem exterior vá caminhando para sua ruína, o homem interior se renova dia a dia. Pois nossas tribulações momentâneas são leves em relação ao peso eterno de glória que elas nos preparam até o excesso. Não olhamos para as coisas que se vêem, mas para as que não se vêem; pois o que se vê é transitório; mas o que não se vê é eterno. Sabemos, com efeito, que, se a nossa morada terrestre, esta tenda, for destruída, teremos no céu um edifício, obra de Deus, morada eterna, não feita por mãos humanas. Tanto assim que gememos pelo desejo ardente de revestir por cima da nossa morada terrestre a nossa habitação celeste, o que será possível se formos encontrados vestidos, e não nus. Pois nós, que estamos nesta tenda, gememos acabrunhados porque não queremos ser despojados da nossa
veste, mas revestir a outra por cima desta, a fim de que o que é mortal seja absorvido pela vida.
E quem nos dispôs a isto foi Deus, que nos deu o penhor do espírito. Por conseguinte, estamos sempre confiantes, sabendo que, enquanto habitamos neste corpo, estamos fora de nossa mansão, longe do Senhor, pois caminhamos pela fé e não pela visão. Sim, e estamos cheios de confiança, e preferimos deixar a mansão deste corpo, para ir morar junto do Senhor. Por isso também esforçamo-nos por agradar-lhe, quer permaneçamos em nossa mansão, quer a deixemos. Porquanto todos nós teremos de comparecer manifestamente perante o tribunal de Cristo, a fim de que cada um receba a retribuição do que tiver feito durante a sua vida no corpo, seja para o bem, seja para o mal" (2Cor 4,16-5,10).
Neste texto são Paulo conta com a união do cristão com Cristo imediatamente após a morte. Mas não sem antes comparecer perante o tribunal de Cristo. Ao ladrão arrependido, que morre crucificado ao lado de Jesus, garante seu divino Redentor: "Em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso" (Lc 23,43). Assim também na parábola do mau rico e do pobre Lázaro, contada por Cristo (cf. Lc 16,19-31): ambos morrem, um vai para o céu, outro para o inferno, sem novas oportunidades de provação.
Contra as teorias que postulam a pluralidade de existências terrestres em sucessivas reencarnações, ensina o Concílio Vaticano II o "único curso de nossa vida terrestre" (Lumen Gentium n. 48d).

6. OS FALECIDOS QUE ESTÃO NO CÈU

Depois da morte há duas possibilidades definitivas: o prêmio do céu ou o castigo do inferno. As palavras do divino mestre Jesus não nos deixam nenhuma dúvida a este respeito.
Basta ler sua descrição do juízo final (Mt 25,31-46) ou a parábola sobre o pobre Lázaro e o rico epulão (Lc 16,19-31). Quando a doutrina da Igreja menciona ainda o purgatório, fala de fato também daqueles que irão definitivamente para o céu. 
Segundo as numerosas expressões usadas pela Sagrada Escritura e Liturgia da Igreja, o céu é a pátria verdadeira, o reino de Deus, a casa do Pai, a herança de Deus, a visão beatífica, a vida eterna, a glória sem fim, o repouso eterno, a alegria perfeita, a felicidade total, o estar com Cristo, a companhia dos santos, o convívio dos bem-aventurados, o prêmio da imortalidade, o banquete nupcial, o paraíso. "A vida eterna é esta: que eles te conheçam a ti, o Deus único e verdadeiro, e aquele que enviaste, Jesus Cristo" (J o 17,3).
Aqui na terra temos a visão da fé, "como num espelho"; mas no céu veremos a Deus "face a face" (lCor 13,12), "tal como ele é" (lJo 3,2). Lá seremos, explica Jesus, "como os anjos do céu" (Mt 22,30). "O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, e o coração do homem não percebeu, isso Deus preparou para aqueles que o amam" (lCor 2,9).
O papa Bento XII, na Constituição Benedictus Deus, de 29-1-1336, definiu como verdade de fé que "as almas de todos os santos, em que já nada existe suscetível de purificação, encontram- se no céu, mesmo antes de ressuscitarem os corpos e do juízo universal; vêem a essência divina, numa visão intuitiva, face a face, sem que alguma criatura lhes seja objeto intermediário de visão. A essência divina se lhes mostra imediatamente, sem véu, clara e abertamente. Por esta visão da essência divina deleitam-se; vendo e deleitando-se assim, as almas dos defuntos são realmente felizes, possuem a vida e o descanso eternos".
O céu é pura dádiva de Deus e não o resultado do mérito ou das boas obras do homem.
Será sempre substancialmente idêntico para todos, pois consiste na visão beatífica. Segundo a parábola dos operários da vinha, à tarde todos recebem o mesmo pagamento (d. Mt 20,8-16). 
Todavia, o céu será circunstancialmente diferente: cada um recebe em proporção ao seu zelo e à
sua fidelidade, como é fácil de ver na dupla parábola dos talentos (d. Mt 25,14-30; Lc 19,11-28). Um dos servos é preposto a dez cidades, outro a cinco, cada um segundo a grandeza de seu mérito pessoal. Mas será sempre superabundante, como se vê por expressões como "recompensa de cem por um" (Mt 19,29), "medida cheia, farta, transbordante" (Le 6,38). São Paulo apela para o dia "da revelação da justa sentença de Deus, que retribuirá a cada um segundo as suas obras" (Rm 2,5-6). Cada qual receberá a recompensa segundo seu trabalho (lCor 3,8). Dos ministros de Deus diz o apóstolo: "Seu fim corresponderá às suas obras (2Cor 11,15). Ou, como víamos em outro texto paulino, "todos nós teremos que comparecer manifestamente perante o tribunal de Cristo, a fim de que cada um receba a retribuição do que tiver feito durante a sua vida no corpo, seja para o bem, seja para o mal" (2Cor 5,10).
É evidente que não podemos merecer a graça, mas podemos merecer o aumento da graça.
Assim também seremos incapazes de merecer a glória, mas temos a possibilidade de merecer o aumento da glória. "Na casa de meu Pai há muitas moradas" (Jo 14,2).

7. A COMUNHÃO DOS SANTOS



Depois da morte, as almas dos falecidos continuam solidárias com os que ainda peregrinam nesta terra, particularmente com os quais estão vinculados pelos laços de parentesco e amizade. O Concílio Vaticano II, na Constituição Lumen Gentium (n. 49), ensina claramente:
- "A união dos que estão na terra com os irmãos que descansam na paz de Cristo de maneira nenhuma se interrompe; ao contrário, conforme a fé perene da Igreja, vê-se fortalecida pela comunicação de bens espirituais".
Há, pois, uma ação dos que estão no céu em nosso favor.
Esta ação é semelhante à atividade intercessora de Cristo glorificado, descrita pela carta aos hebreus (7,24-25). Como sacerdote eterno, Jesus exerce no céu sua função de mediador e intercessor (cf. Rm 8,34; 110 2,1). Ele "vive para sempre a fim de interceder por nós" (Hb 7,25). 
Sua atividade intercessora celeste é o prolongamento de sua ação salvadora terrestre e se fundamenta na obra redentora já realizada.
Assim será também com os que estão no céu: "Suas obras os seguem" (Ap 14,13). Agora, no céu, ensina o Concílio Vaticano II, "apresentam os méritos que pelo único mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, alcançaram na terra servindo ao Senhor em tudo e completando em sua própria carne o que falta aos sofrimentos de Cristo por seu Corpo que é a Igreja" (cf. CI 1,24). E assim, "recebidos na pátria e presentes diante do Senhor, por ele, com ele e nele, não cessam de interceder por nós". E o Concílio conclui: "Por conseguinte, pela sua fraterna solicitude a nossa fraqueza recebe o mais valioso auxílio" (LG 49).
No capítulo sobre Nossa Senhora, o Concílio descreve mais minuciosamente esta atividade intercessora no céu. Também neste contexto há o cuidado de vincular a presente ação mediadora celeste com a anterior vida terrestre: durante sua vida aqui na terra, Maria cooperou na obra do Salvador para a restauração da vida divina nas almas, tomando-se para nós "mãe na ordem da graça". Ensina então o Concílio: "Esta maternidade de Maria na economia da graça perdura ininterruptamente, a partir do consenso que ela fielmente prestou na Anunciação, que sob a cruz resolutamente manteve, até a própria consumação de todos os eleitos. Assunta ao céu, não abandonou este salvífico múnus, mas por sua multíplice intercessão prossegue em granjearnos os dons de salvação eterna. Por sua maternal caridade cuida dos irmãos de seu Filho, que ainda peregrinam rodeados de perigos e dificuldades, até que sejam conduzidos à feliz pátria"
(LG 62).
Aqui está evidentemente a justificação principal de nossa confiança nos santos do céu, a razão de nossa devoção a eles e o fundamento do tradicional culto aos santos. "Convém - recomenda o Concílio, sempre no mesmo documento, agora no n. 50 - sumamente que amemos esses amigos e co-herdeiros de Jesus Cristo, além disso nossos irmãos e exímios benfeitores; que rendamos as devidas graças a Deus por eles; que os invoquemos com súplicas; e que recorramos às suas orações, à sua intercessão e ao seu auxílio para impetrarmos de Deus as graças necessárias, por meio de seu filho Jesus Cristo, único Redentor e Salvador nosso." 
Os peregrinos da terra podemos estabelecer este relacionamento mútuo de comunicação de bens espirituais com qualquer falecido que esperamos estar no céu, e não apenas com os santos declarados pela Igreja. Não é necessário que a Igreja canonize minha falecida mãe, para que eu possa dirigir-me a ela, invocá-la e confiar em sua intercessão. Falecida, ela continua sendo minha mãe e eu seu filho. Os laços que nos ligavam na terra não só não foram rompidos, mas robustecidos depois da morte. 


8. AS ALMAS DO PURGATÓRIO

Mesmo os que, neste mundo, se esforçam por viver unidos a Cristo e em estado de amizade com Deus (chamado também "estado de graça santificante"). Continuam sujeitos às debilidades humanas. "Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não está em nós", proclama são João (1Jo 1,8).
Mas o mesmo são João fala de um pecado "que leva à morte" em contraposição a outro pecado "que não leva à morte" (lJo 5,16-17). É evidente que são João se refere aqui à morte espiritual ou à perda da verdadeira vida, a "vida eterna". Por esta razão costumamos distinguir entre pecados "mortais" (que levam à morte espiritual) e pecados "veniais" (que não tiram a vida da graça santificante). Estes pecados veniais de fato maculam ou mancham nossa vida de união com Deus e pedem de nós um constante esforço de purificação e reconciliação com Deus. 
Pode assim acontecer que alguém morra neste estado de pecados veniais. Tais impurezas ou manchas impedem então a entrada imediata no céu, já que "nada de impuro pode entrar no paraíso" (ci. Sb 7,25; Is 35,8). Mas a justiça divina também não pode castigar estas almas com punição eterna. Devemos, por conseguinte, admitir para estas almas um estado de purificação posterior à morte e anterior ao ingresso no céu. É o que a tradição cristã denomina "purgatório”. 
Esta consoladora doutrina, negada pelos protestantes, foi formalmente reafirmada pelo Concílio Vaticano II na Constituição dogmática Lumen Gentium (n. 49, 50 e 51). Recorda-nos o Concílio que a Igreja sempre venerou com grande piedade a memória dos defuntos e ofereceu sufrágios por eles; e cita o texto de 2Mc 12,46: "É um pensamento santo e salutar rezar pelos defuntos para que sejam livres de seus pecados".
Depois, no n. 51, o Vaticano II toma a referir-se ao nosso "consórcio vital com os irmãos que ainda se purificam depois da morte"; e decide propor de novo os decretos dos Concílios de Florença e de Trento acerca desta doutrina.
No decreto para os gregos, o Concílio de Florença, em 1439, falara dos falecidos que têm necessidade de ser purificados e podem ser aliviados pelos sufrágios dos irmãos que estão na terra, isto é: pela santa missa, pelas orações, esmolas e por outros exercícios de piedade. 
Mais importante é a reafirmação das determinações doutrinárias e pastorais do Concílio de Trento. O Vaticano II nos remete ao decreto sobre o purgatório e ao cânon 30 de decreto sobre a justificação. Este cânon (de 1547) condena a quem "disser que a todo pecador penitente, que recebeu a graça da justificação, é de tal modo perdoada a ofensa e desfeita e abolida a obrigação à pena eterna, que não lhe fica obrigação alguma de pena temporal a pagar, seja neste mundo ou no outro, no purgatório, antes que lhe possam ser abertas as portas para o reino dos céus". Aqui há um elemento novo: além dos pecados veniais, pode a alma do falecido ter também "penas temporais", que a retêm naquele estado de purificação.
O decreto tridentino sobre o purgatório (de 1563), também reafirmado pelo Vaticano II, cita outra vez o mencionado cânon 30, lembra a doutrina sobre a santa missa (de 1562), que pode ser celebrada também "pelos que morreram em Cristo e não estão plenamente purificados"; e prescreve aos bispos "que façam com que os fiéis mantenham e creiam a sã doutrina sobre o purgatório"; e "sejam excluídas das pregações populares à gente simples as questões difíceis e sutis e as que não edificam nem aumentam a piedade. Igualmente não seja permitido divulgar ou discorrer sobre assuntos duvidosos ou que trazem a aparência de falso. 
Sejam ainda proibidas como escandalosas e prejudiciais aquelas coisas que têm em vista provocar a curiosidade ou recendem a superstição ou torpe lucro". 
Sobre a duração deste estado de purificação depois da morte não há nenhuma doutrina da Igreja. Nada se diz acerca da topografia do além. Com relação ao tipo de penas também nada nos é ensinado. Mas foi principalmente em tomo destes pontos que divagou a fantasia popular, também a dos artistas. O castigo principal consiste certamente na ausência da visão beatífica. 
Esta situação penosa é aceita pelas almas com sentimento de justiça e de amor a Deus.
Agora elas têm clara consciência, incomparavelmente mais viva que na terra, de sua culpabilidade. Elas vibram de profundas alegrias, persuadidas de que suas penas as purificam e aceleram a aproximação de Deus.
É ainda importante assinalar que a Igreja jamais ensinou que todos os falecidos devem passar pelo purgatório antes de serem admitidos à visão beatífica. 
Não nos esqueçamos do Sacramento da Unção dos Enfermos!
Para os moribundos, este Sacramento pode ser também, como se dizia antes, a "extremaunção".
Já são Tiago escrevia: "Alguém dentre vós está doente? Mande chamar os presbíteros da Igreja para que orem sobre ele, ungindo-o com óleo em nome do Senhor. A oração da fé salvará o doente e o Senhor o porá de pé; e se tiver cometido pecados, estes lhe serão perdoados" (5,14-15).
Em 1551 o Concílio de Trento ensinou expressamente que este Sacramento, devidamente recebido, purifica as culpas, perdoa os pecados e até apaga as seqüelas dos pecados (as penas temporais), de tal modo que a alma está preparada para o ingresso imediato no céu. 
A Igreja, além disso, oferece aos moribundos a possibilidade de receber na hora da morte a indulgência plenária.
Nossas relações com as almas do purgatório devem ser entendidas à luz da doutrina do Concílio Vaticano II sobre a não-interrupção da comunhão eclesial depois da morte e sobre o fortalecimento da mútua comunicação de bens espirituais. As almas do purgatório também são "santas" e estão plenamente na comunhão dos santos.

9. O LIMBO DAS CRIANÇAS QUE MORREM SEM BATISMO

Entre os católicos é comum dizer que as crianças que morrem sem terem sido batizadas vão para o limbo. Entende-se então por "limbo" um estado de perpétua exclusão da visão beatífica, mas de felicidade natural.
A idéia do limbo se fundamenta na gratuidade da visão beatífica, na universalidade e gravidade do pecado original e na necessidade do batismo para a salvação. 
Jesus, com efeito, disse a Nicodemos: "Em verdade te digo: quem não nascer da água e do espírito não pode entrar no reino de Deus" (10 3,5). Jesus também faz depender a salvação do batismo (Mc 16,16). Entendeu-se depois que o batismo à água podia ser substituído também pelo batismo "de desejo" e "de sangue", unido a um ato de contrição perfeita. 
No entanto, milhões e milhões de crianças, que ainda não atingiram o uso da razão e nasceram com o pecado original, de fato morrem sem a menor possibilidade de receber o batismo, em qualquer de suas formas conhecidas. Para onde irão?
A concepção do limbo sempre foi apenas um expediente teológico para indicar a pena (exclusão da visão beatífica, que é sempre dom gratuito, sobrenatural) que corresponde ao conceito do pecado original (ausência da graça santificante, também sempre gratuita, sobrenatural): se alguém de fato morrer apenas com o pecado original, não pode entrar no céu. 
Mas a Igreja nunca ensinou, em nenhum documento doutrinal oficial, que as crianças não-batizadas
de fato morrem em estado de pecado original, condenadas ao limbo.
Não devemos esquecer a doutrina cristã sobre a vontade divina salvífica universal: "Deus quer que todos os homens sejam salvos" (1 Tm 2,4); portanto também as crianças. Todos, inclusive as crianças, são chamadas por Deus para a comunhão perpétua da incorruptível vida divina. E Jesus, o divino Salvador, morreu por todos (cf. Rm 8,32), sem excluir as crianças. Por conseguinte deve haver algum meio de salvação sobrenatural também para as almas imortais das crianças que morrem sem batismo, até mesmo, muitíssimas, antes de nascer (aborto). O Concílio Vaticano II, na Constituição Gaudium et Spes (n. 22), depois de acenar para a esperança da ressurreição do cristão, propõe esta doutrina:
- "Isto vale não somente para os cristãos, mas também para todos os homens de boa vontade em cujos corações a graça opera de modo invisível. Com efeito, tendo Cristo morrido por todos e sendo uma só a vocação última do homem, isto é, divina, devemos crer que o Espírito Santo oferece a todos a possibilidade de se associarem, de modo conhecido por Deus, a este mistério pascal".
Neste precioso texto conciliar devemos observar duas afirmações: que a possibilidade de associação ao mistério pascal é oferecida "a todos" (em latim: cunctis), por conseguinte também às crianças; e que o meio ou o modo de salvação é "conhecido só por Deus" (em latim: modo Deo cognito). Será inútil perder-se em especulações, já que não nos foi revelado. Também no decreto Ad gentes (n. 7) o mesmo recente Concílio ecumênico nos fala de caminhos (no plural!) de salvação "só conhecidos por Deus" (em latim: Deus viis sibi notis).
Estamos assim diante de uma doutrina consoladora, altamente autorizada, que nos permite concluir que o limbo das crianças que morrem sem batismo de fato não existe. Trata-se apenas de um conceito teológico muito útil, que nos ajuda a entender a gravidade do pecado original, para então recorrer, sempre e tão logo nos seja possível, ao meio de salvação que o próprio Jesus instituiu e indicou: o batismo. Negligenciar este meio que nos foi revelado, para adiar o batismo das crianças confiando nos caminhos de salvação que só Deus conhece, seria uma condenável atitude de presunção e temeridade.


10. OS CONDENADOS AO INFERNO

Jesus nos coloca diante de dois caminhos: "Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição; e muitos são os que entram por ele. Estreita, porém, é a porta e apertado o caminho que conduz à vida; e poucos são os que o encontram" (Mt 7,13-14).
Esta doutrina dos dois caminhos, um para a vida e outro para a perdição, é um tema que aparece com freqüência na Sagrada Escritura (cf. Dt 30,15-20; Pr 4,10-19; Ecl 15,11-20; Jr 21,8; Sl 1). Na carta aos gálatas lemos: "O que o homem semear, isto colherá: quem semear na sua carne, na carne colherá a corrupção; quem semear no espírito, do espírito colherá a vida eterna" (Gl 6,7-8).
O destino de nossa vida está nas nossas mãos e depende da decisão pessoal de cada um.
Somos seres livres e a liberdade é o maior dom que recebemos do Criador. Deus quis deixar ao homem o poder de decidir (cf. Ecl 15,14), para que assim procure espontaneamente o seu Criador, a ele adira livremente e chegue à perfeição plena e feliz.
A liberdade é também um risco e permite a possibilidade do pecado "que conduz à morte" (110 5,16-17).
A revelação de Jesus sobre o juízo final não deixa dúvidas. A uns convidará: "Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino preparado para vós"; a outros dirá: "Apartaivos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos"; e Jesus conclui: "E irão estes para o castigo eterno, enquanto os justos irão para a vida eterna" (Mt 25,34.41.46). Como será "eterno", sem fim, o prêmio dos justos, igualmente "eterno", sem fim, será o castigo dos maus. Os dois estados são apresentados como definitivos e irreversíveis. 
Jesus retoma este tema com muita freqüência:
- Quem blasfemar contra o Espírito Santo "não será perdoado eternamente, mas será réu de pecado eterno" (Mc 3,29).
- Quem pecar contra a castidade "será lançado no inferno" (Mt 5,29).
- Quem dar escândalo "irá para o inferno, o fogo inextinguível, onde o verme não morre, nem o fogo se apaga" (Mc 9,43-48).
- Os maus "serão lançados na fornalha do fogo; aí haverá choro e ranger de dentes" (Mt 13,50).
- O servo inútil "será lançado às trevas de fora; aí haverá choro e ranger de dentes" (Mt 25,30).
- Os que rejeitam a fé "serão lançados nas trevas de fora; aí haverá choro e ranger de dentes" (Mt 8,12).
- Os convidados ao banquete, que vierem sem veste nupcial, serão "atados de mãos e pés e lançados nas trevas de fora" (Mt 22,13).
- O rico gozador que não quis ajudar o pobre Lázaro foi sepultado no inferno, "no meio dos tormentos", donde pediu ao menos uma gotinha de água porque gemia: "Sofro grandes tormentos nestas chamas" (cf. Lc 16,19-31).
Assim ensinaram também os apóstolos. Aos coríntios, por exemplo, escreve são Paulo:
"Não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos iludais! Nem os impudicos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os depravados, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os injuriosos herdarão o reino de Deus" (1 Cor 6,9-10). E o Apocalipse explica: "Quanto aos preguiçosos e aos infiéis, aos corruptos, aos assassinos, aos impudicos, aos magos, aos idólatras e a todos os mentirosos, a sua porção se encontra no lago ardente de fogo e enxofre, que é a segunda morte" (21,8).
Referindo-se aos opressores, aos ateus e aos que não obedecem ao Evangelho, declara são Paulo: "O castigo deles será a ruína eterna, longe da face do Senhor e do esplendor de sua majestade" (2Ts 1,9). E a carta aos hebreus explica: "Pois, se pecarmos voluntariamente e com pleno conhecimento da verdade, já não há sacrifícios pelo pecado. Aguarda-nos apenas o julgamento tremendo e o ardor de um fogo que consumirá os adversários. Quem transgride a lei de Moisés é condenado à morte, sem piedade, com base em duas ou três testemunhas. Podeis então imaginar que castigo mais severo merecerá aquele que calcou aos pés o Filho de Deus, e profanou o sangue da aliança no qual foi santificado, e ultrajou o Espírito da graça? Nós conhecemos, com efeito, quem é que diz: 'A mim pertence a vingança, eu é que retribuirei!' E ainda: 'O Senhor julgará o seu povo'. Quão terrível é cair nas mãos do Deus vivo!" (10,26-31).
Baseada em tantos textos, tão claros que não necessitam de maiores explicações, a Igreja sempre ensinou a existência e a eternidade do inferno. O papa Bento XII, em 1336, foi solene, e com sua suprema autoridade magisterial declarou: "Definimos que, segundo a disposição geral de Deus, as almas que morrem em pecado mortal descem, depois da morte, ao inferno, onde são atormentadas com penas eternas".
E o Concílio Vaticano I, na Lumen Gentium (de 1964) nos deixa esta exortação no n. 48:
"Somos impelidos pela mesma caridade a viver mais para aquele que por nós morreu e ressurgiu. Por isso nos esforçamos para sermos agradáveis em tudo ao Senhor e revestimo-nos da armadura de Deus, para que possamos estar firmes contra as ciladas do demônio e resistir no dia mau. Mas como desconhecemos o dia e a hora, conforme a advertência do Senhor, vigiemos constantemente, a fim de que, terminado o único curso de nossa vida terrestre, possamos entrar com ele para as bodas e mereçamos ser contados com os benditos e não sejamos mandados, como servos maus e preguiçosos, apartar-nos para o fogo eterno, para as trevas exteriores, onde haverá choro e ranger de dentes. Pois antes de reinarmos com Cristo glorioso, todos nós compareceremos diante do tribunal de Cristo, para que cada um receba conforme o que tiver
feito, por meio do corpo, o bem ou o mal. E no fim do mundo os que praticaram o bem irão para a ressurreição de vida, mas os que praticaram o mal, para a ressurreição de condenação". 
Embora ensine claramente a existência e a eternidade do inferno e a possibilidade de ser a ele condenado (e não poderia proceder de outra maneira, já que as palavras de Jesus Cristo e dos apóstolos são evidentes em seu sentido), a Igreja, no entanto, jamais declarou que alguém foi condenado ao inferno ou que de fato há seres humanos no inferno. Refere-nos o evangelista Lucas (13,23-24) que certo dia alguém perguntou a Jesus: "Senhor, é pequeno o número dos que se salvam?" E Jesus respondeu: "Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, pois eu vos digo que muitos procurarão entrar e não conseguirão".
Mas do Apocalipse recebemos uma visão otimista: "Depois disso, eis que vi uma grande multidão, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas" (7,9) . Estavam no céu...


11. A RESSURREIÇÃO DOS FALECIDOS

O corpo é um elemento constitutivo essencial do ser humano. Entre corpo e alma há uma união substancial. A alma tem no corpo seu instrumento conatural. Separada do corpo, pela morte, a alma imortal não perde sua natureza e espera unir-se novamente ao corpo pela ressurreição.
A ressurreição claramente anunciada por Cristo e já realizada nele revela que os homens não terminarão com a morte, mas continuarão vivendo e com vida total, espiritual e corporal. 
Assim escreve são Paulo aos coríntios:
- "Se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como podem alguns dentre vós dizer que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a vossa fé. 
Acontece mesmo que somos falsas testemunhas de Deus, pois atestamos contra Deus que ele ressuscitou a Cristo, quando de fato não o ressuscitou, se é que os mortos não ressuscitam. 
Pois se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, ilusória é a vossa fé; ainda estais em vossos pecados. Por conseguinte, aqueles que adormeceram em Cristo estão perdidos. Se temos esperança em Cristo tão somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens. Não, porém! Cristo ressuscitou dos mortos, primícias dos que adormeceram. Com efeito,. visto que a morte veio por um homem, também por um homem vem a ressurreição dos mortos. Pois, assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos receberão a vida. Cada um, porém, em sua ordem: como primícias, Cristo; depois, aqueles que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda" (1Cor 15,12-23). 
Eis um texto denso e rico, considerado fundamental para a visão cristã. A mensagem central é clara: os falecidos ressuscitarão. Seu modelo é o próprio Senhor Ressuscitado, "primícias dos que adormeceram". Os apóstolos anunciavam "em Jesus a ressurreição dos mortos" (At 4,3). São Paulo resume seu pensamento quando escreve aos filipenses (3,21): Jesus Cristo "transfigurará o nosso corpo humilhado, conformando-o ao seu corpo glorioso, pela operação que lhe dá poder de submeter a si todas as coisas".
Ressuscitar não significa o começo de uma repetição da vida terrena (como era o caso das ressurreições do jovem de Naim, da filha de Jairo e de Lázaro, que depois morreram outra vez), mas de uma vida nova e definitiva. O ressuscitado não é simplesmente reintegrado à existência terrena, mas recebe uma transformação radical da vida humana. Jesus o explica claramente aos saduceus que não aceitavam a ressurreição: "Na ressurreição, nem eles se casam e nem elas se dão em casamento, mas são todos como os anjos no céu" (Mt 22,30; Lc 20,36).
Neste contexto Jesus declara aos saduceus: "Estais enganados, desconhecendo as Escrituras e o poder de Deus" (Mt 22,29). O Divino Mestre nos remete simplesmente ao "poder de Deus". Para explicar à Virgem de Nazaré o mistério da encarnação, o anjo Gabriel lhe recordou o mesmo argumento: "Para Deus nada é impossível" (Lc 1,37). 
Também são Paulo pensa na onipotência divina quando descreve a profunda transformação do corpo ressuscitado. Vale a pena meditar nesta descrição feita pelo apóstolo aos coríntios ( 1 Cor 15,35-44):
- "Mas, dirá alguém, como ressuscitam os mortos? Com que corpo voltam? Insensato! O que semeias não readquire vida a não ser que morra. E o que semeias. não é o corpo da futura planta que deve nascer, mas um simples grão, de trigo ou de qualquer outra espécie. A seguir, Deus lhe dá corpo como quer; a cada uma das sementes ele dá o corpo que lhe é próprio. 
Nenhuma carne é igual às outras, mas uma é a carne dos homens, outra é a carne dos quadrúpedes, outra, a dos pássaros, outra, a dos peixes. Há corpos celestes e há corpos terrestres. São, porém, diversos o brilho do celeste e o brilho dos terrestres. Um é o brilho do sol, outro o brilho da lua, e outro o brilho das estrelas. E até de estrela para estrela há diferença de brilho. O mesmo se dá com a ressurreição dos mortos: semeado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível; semeado desprezível, ressuscita reluzente de glória; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual".
A comparação que são Paulo faz com a semente merece nossa consideração. Recorda estas palavras de Jesus: "Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer, produzirá muito fruto" (10 12,24). Nós, vivendo agora neste corpo mortal, somos como uma semente. Há na semente extraordinárias virtualidades: toda a enorme árvore que dela nascer já está virtualmente na semente. Embora haja identidade entre a semente e a árvore, não há, contudo, nenhuma comparação entre a pequenina semente e a grande árvore. Processo semelhante se dará conosco: agora somos como a semente, na ressurreição seremos algo incomparavelmente diferente. Como as virtualidades da semente se atualizam na árvore crescida, da mesma maneira as virtualidades que já estão em nós receberão na ressurreição sua
plena atualização. Como não se pode comparar a semente com a árvore, será igualmente impossível confrontar nosso corpo de agora com o corpo ressuscitado. Há em nós uma "semente divina" (cf. 110 3,9) ou, como dizia o Concílio Vaticano II, uma "semente de eternidade" (GS 18a), que na ressurreição desabrochará em plenitude. Em outras palavras: a ressurreição será a total realização de todas as nossas virtualidades. Não somos nem capazes de imaginar o que seremos.
No texto citado aos coríntios (lCor 15,42-44), são Paulo assinala quatro qualidades do corpo ressuscitado:
- "Incorruptível", em oposição ao atual estado de desgaste, doença e morte: "Nunca mais terão fome, nem sede, o sol nunca mais os afligirá nem qualquer calor ardente... e Deus enxugará toda lágrima de seus olhos" (Ap 7,16-17). 
- "Reluzente de glória": esta claridade lembra a "glória de Deus" ou o esplendor do poder de Deus (cf. Ex 24,16) e de Cristo ressuscitado (cf. J o 17,5). "Então os justos brilharão como o sol no Reino de seu Pai", anunciou Jesus (Mt 13,43).
- "Cheio de força": poder e agilidade, em contraposição à debilidade e torpeza atuais.
- "Corpo espiritual": diferente do corpo agora animado somente por um princípio de vida natural, ou "psíquico". O corpo ressuscitado estará animado pelo mesmo espírito vital do homem regenerado em Cristo que vive sob o influxo e a moção do Espírito Santo. 
O tipo de identidade que há entre a semente e a árvore continuará também entre nosso atual corpo mortal e o gloriosamente ressuscitado. Pois são Paulo continua sua explicação aos coríntios: "É necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade e que este ser mortal revista a imortalidade. Quando, pois, este ser corruptível tiver revestido a incorruptibilidade e este ser mortal tiver revestido a imortalidade, cumprir-se-á a palavra da Escritura: a morte foi absorvida na vitória" (lCor 15,53-54).
A ressurreição faz parte do mistério da Redenção, que não seria completa se não atingisse também o corpo, parte essencial do ser humano. São Paulo fala diretamente da "redenção do corpo", pela qual suspiramos (Rm 8,23). O germe da imortalidade corporal já está em nós pela Eucaristia: "Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e eu o ressuscitarei no último dia" (10 6,54).
Esta última palavra de Jesus já indica também o tempo da ressurreição: "No último dia", ou, como víamos no texto de são Paulo, "por ocasião da sua vinda" (lCor 15,23), expressão que designa a gloriosa vinda de Cristo no seu dia (cf. 1 Cor 1,8), no fim dos tempos (cf. Mt 24,3). 
Jesus disse: "Não vos admireis com isto: vem a hora em que todos os que repousam nos sepulcros ouvirão a sua voz (a do Filho do Homem) e sairão: os que tiverem feito o bem, para uma ressurreição de vida; os que tiverem praticado o mal, para uma ressurreição de condenação" (Jo 5,28-29).
E são Paulo escreve aos tessalonicenses (l Ts 4,16): "Quando o Senhor, ao sinal dado, à voz do arcanjo e ao som da trombeta divina, descer do céu, então os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; em seguida, nós, os vivos, que estivermos lá, seremos arrebatados com eles nas nuvens para o encontro com o Senhor nos ares. E assim estaremos para sempre com o Senhor".


12. OS ANJOS

Exclusivamente pela revelação poderemos saber se de fato existe um mundo invisível e imaterial, com seres espirituais e inteligentes. Nossa limitada inteligência apenas poderá suspeitar que existam. Pois observando os níveis ascendentes, em escala de perfeição, das coisas que vemos, desde o reino mineral até o humano, poderíamos pensar numa similar escala ascendente superior ao homem, num mundo criado invisível com seres imateriais sumamente inteligentes, refletindo com maior perfeição os dons do Criador.
A revelação divina de fato nos fala destes seres imateriais, invisíveis e inteligentes, que colaboram com a divina providência na história da salvação. São chamados "anjos". 
Mas a palavra "anjo" (do grego ángelos, que significa enviado ou mensageiro) apenas designa uma função destes seres com relação a este nosso mundo humano. E é unicamente sob este aspecto que somos informados pela revelação acerca da existência de um mundo espiritual diferente do nosso.
Para a Bíblia, com efeito, a existência dos anjos não é problema. No Antigo Testamento sua presença no mundo dos homens é constante. E no Novo Testamento ocupam momentos importantes, tanto por ocasião do nascimento, paixão, ressurreição e ascensão de Jesus Cristo, como na sua própria pregação:
- Um "anjo do Senhor" comunica a Zacarias o nascimento de João Batista, o precursor do Messias; e este anjo explica: "Eu sou Gabriel; assisto diante de Deus e fui enviado para anunciar-te esta boa nova" (Lc 1,11-22).
- O mesmo anjo Gabriel é depois enviado a Maria para anunciar-lhe a vinda do Messias filho de Deus (cf. Lc 1,26-38). 
-Um "anjo do Senhor" tranqüiliza José, perturbado pelo mistério de Maria (cf. Mt 1,20-25).
-Um anjo orienta a fuga para o Egito e o regresso, para salvar o Menino (cf. Mt 2,13-23).
-Um anjo revela aos pastores de Belém o nascimento do Salvador; e ao anjo "juntou-se uma multidão do exército celeste" (cf. Lc 2;9-14).
-Anjos servem a Jesus no deserto depois do jejum e das tentações (cf. Mt 4,11; Mc 1,13).
-As crianças têm anjos que vêem continuamente a face de Deus (cf. Mt 18,10).
-Anjos levam o falecido Lázaro ao seio de Abraão (cf.Lc 16,22).
-Anjos se alegram por um pecador que se converte (cf. Lc 15,10).
-Quando Jesus voltar como juiz dos homens, anjos formarão seu séquito (cf. Mt 16,27; 25,31; Mc 13,27).
-Jesus poderia dispor de doze legiões de anjos que o defenderiam na paixão (cf. Mt 16,53).
- Anjos anunciam às mulheres a gloriosa ressurreição do Senhor (cf. Mt 28,5-6; Me 16,5; Lc 24,23; Jo 20,12).
- Anjos dissuadem os discípulos de sua vã espera depois da ascensão do Senhor (At 1,10-11).
Eis aqui uma impressionante série de afirmações sobre a realidade dos anjos, "espíritos servidores, enviados ao serviço dos que devem herdar a salvação" (Hb 1,14). 
É importante assinalar que se trata sempre de criaturas. Diante de uma corrente sincretista do judaísmo, que pretendia identificar os anjos com os deuses astrais e os elementos cósmicos dos pagãos (cf. CI 2,8. 12.20; GI 4,3-9), tributando-lhes culto exagerado, são Paulo corrige energicamente estes erros, destacando a transcendência e o primado singular de Cristo, o Filho de Deus: "Nele foram criadas todas as coisas, as visíveis e as invisíveis: tronos, soberanias, principados, autoridades, tudo foi criado por ele e para ele. Ele é autor de tudo e tudo nele subsiste" ( CI 1,16-17).
Não é, pois, de admirar que, depois, na vida da Igreja, houvesse também atenção especial a estes misteriosos seres do além. A Igreja nascente não podia olvidar a companhia destes mediadores, enviados ou mensageiros de Deus, amigos dos homens. São seus protetores divinos nas circunstâncias adversas. O episódio de Pedro, preso por Herodes Antipas, vigiado por 16 soldados e prodigiosamente libertado por um anjo, enquanto "a Igreja não cessava de fazer orações por ele" (At 12,4-11), era índice e símbolo daquilo que será depois a devoção cristã aos anjos.
Recentemente o papa Paulo VI, no credo do Povo de Deus (de 1967), resumiu a fé da Igreja em Deus Criador com estas palavras: "Cremos em um só Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, Criador das coisas visíveis, como este mundo, onde se desenrola a nossa vida passageira; e Criador das coisas invisíveis, como são os espíritos puros, que também chamamos anjos..." Assim pode cantar a Igreja no prefácio dos anjos: "Na verdade, ó Pai, é nosso dever... engrandecer-vos nos vossos anjos e arcanjos. Pois é a vós que glorificamos ao louvarmos os anjos que criastes e que foram dignos do vosso amor. E a admiração que eles merecem nos mostra como sois grande e como deveis ser amado".


13. O ANJO DA GUARDA

É doutrina comum e cara na Igreja que a um anjo do Senhor está confiada a guarda de cada batizado. O catecismo do Concílio de Trento resumia a doutrina tradicional dos séculos anteriores nestes termos: "Por desígnio de sua providência, confiou Deus aos anjos a obrigação de guardarem o gênero humano e de assistirem a todos os homens individualmente, para que não sofram dano de maior gravidade. Assim como os pais dão aos filhos guardas, que os defendem de perigos, quando precisam viajar por caminhos expostos e arriscados, assim também o Pai Celeste destinou a cada um de nós um anjo que nos proteja, com seu auxílio e vigilância, para podermos evitar as emboscadas dos inimigos e repelir seus tremendos ataques
contra nós; para que, sob a sua direção, possamos conservar-nos no caminho reto e que nenhum ardil do falso adversário nos faça desviar do rumo que leva ao céu". O catecismo tem o cuidado de explicar: "Deus não só envia seus anjos em certas ocasiões e para fins particulares, mas também lhes confiou nossa proteção desde o primeiro instante de nossa existência e incumbiulhes de velarem pela salvação individual de todos os homens”.
A Igreja endossou oficialmente esta doutrina estabelecendo para o dia 2 de outubro uma festa litúrgica universal para os santos anjos da guarda. A liturgia deste dia nos oferece um rico florilégio de textos ( orações, hinos, leituras, responsórios, antífonas e salmos) nos quais a fé da Igreja se transforma em oração. A oração oficial deste dia reza: "O Deus, que na vossa misteriosa providência mandais os vossos anjos para guardar-nos, concedei que nos defendam de todos os perigos e gozemos eternamente do seu convívio".
Todos conhecemos esta oração familiar: "Santo anjo do Senhor, meu zeloso guardador, a ti me confiou a piedade divina. Sempre me rege e guarda, governa e ilumina. Amém". Durante o último Concílio ecumênico, o Vaticano II (de 1962 a 1965), todas as reuniões gerais dos bispos do mundo inteiro terminavam sempre com esta piedosa invocação. Era a expressão da fé da Igreja universal em forma de oração, segundo o conhecido adágio: a lei da oração é a lei da fé, isto é: a lei da fé deve estabelecer a lei da oração.
Pode-se por isso afirmar que a doutrina acerca do ministério dos anjos, tal como está nos numerosos textos litúrgicos, é a expressão pública da fé católica. A Igreja reza aos anjos da guarda porque crê que eles receberam de Deus a especial missão de servir aos que devem herdar a salvação; suplica ao anjo que apresente nossas orações ao Senhor porque crê que o espírito celeste serve de intermediário; manda que unamos nossas vozes com as dos anjos porque crê que eles estão ao nosso lado, na igreja, para cantar conosco as glórias do Criador; ordena com freqüência implorar o auxílio do anjo na hora da luta contra as tentações e emboscadas do diabo e seus demônios porque crê que estes andam de fato por aí como um leão a rugir procurando a quem devorar, e que o anjo é particularmente indicado para valer-nos nesta sorte de combates espirituais; em cerimônia solene implora do céu anjo especial para custodiar um templo porque
crê que Deus há de enviá-lo realmente; faz-nos rezar todos os dias ao anjo para que nos ilumine porque crê que ele pode fazê-lo e está disposto a isso; suplica a presença do anjo da paz porque crê que os espíritos celestes podem ser deputados para tal missão; exige o afastamento do demônio e a presença do anjo bom porque crê na atuação real de um e de outro; nomeia e estabelece anjos como patronos e protetores de nações, províncias, dioceses, paróquias ou comunidades porque crê que os espíritos virão mesmo tomar conta e defender o que lhes foi confiado; pede aos anjos que acompanhem e protejam seus filhos nas viagens porque crê que o exemplo de Tobias não foi nem é singular; chama os anjos na hora da morte, roga-lhes que nos defendam na derradeira agonia porque crê que os anjos nos acompanham de fato até estar definitivamente garantida nossa eterna beatitude.
Na carta aos hebreus damos com um texto particularmente expressivo. O inspirado autor fala da superioridade de Jesus Cristo sobre os anjos, apresenta vários argumentos para sua tese e lança então, no v. 14 (do capo I), uma pergunta como se fosse um argumento: "Porventura, não são todos eles (os anjos) espíritos servidores, enviados ao serviço dos que devem herdar a salvação?" Esta pergunta do apóstolo permite uma afirmação positiva, que é precisamente a doutrina da Igreja sobre os anjos da guarda: os anjos são espíritos destinados a ministrar (o grego diz: leit-ourgikós: destinado ao serviço, ao ministério), enviados por Deus para servir (diakonia) aos que devem herdar a salvação. Jesus falou provavelmente destes anjos-diáconos quando, em Mt 18,10, nos admoesta que não devemos dar escândalo aos pequeninos "porque seus anjos no céu contemplam continuamente a face do Pai".
Não é sem comoção que lemos esta revelação do anjo a Tobias: "Vou descobrir-vos a verdade - diz o anjo - e não vos ocultarei o que está em segredo: quando tu oravas com lágrimas e enterravas os mortos e deixavas o teu jantar e escondias os mortos em tua casa de dia e os enterravas de noite, eu apresentava as tuas orações ao Senhor" (Tb 12,11-12; cf. 3,25). Os santos padres falam freqüentemente deste "anjo da oração". A Igreja Orante exprime esta sua fé num momento solene, na Oração Eucarística chamada Cânon Romano, num texto que inexplicavelmente foi omitido na atual tradução brasileira oficial: "Supplices te rogamos, omnipotens Deus: iube haec perferri per manus sancti Angeli tui in sublime altare tuum, in conspectu divinae maiestatis tuae". Lembra as "taças de ouro cheias do perfume, que são as orações dos
santos" e que estão sobre o altar do céu (Ap 5,8). Por isso a Igreja reza sobre as oferendas, na missa votiva dos santos anjos: "Nós vos apresentamos, ó Deus, Com nossas humildes preces, estas oferendas de louvor; levadas pelos anjos à vossa presença, sejam recebidas com agrado e obtenham para nós a salvação".
Alegram-se os anjos com a perseverança dos justos e a conversão dos pecadores (cf. Lc 15,10). Procuram, por isso, levar os pecadores ao arrependimento e à penitência. O "anjo da penitência" ocupa um lugar especial na Patrística. O anjo deve excitar na alma a contrição. Mas se ele acorda em nós o remorso, será para o nosso bem e nossa paz. O "anjo da paz" passou da Patrística para a Liturgia. Nosso atual ritual romano exclama muitas vezes: "Esteja presente o anjo da paz!" Como confortou a Cristo em agonia (cf. Lc 22,43), assim deve trazer também a nós a paz interior.
O anjo da guarda é particularmente invocado "para que nos ilumine". Pode e deve haver com o anjo verdadeira "conversação". Mas não é dado aos anjos penetrar em nossa intimidade mais profunda. Só Deus é o perscrutador dos corações. Falando da nossa consciência, ensina o Concílio Vaticano II que ela "é o núcleo secretíssimo e o sacrário do homem, onde ele está sozinho com Deus" (GS 16). Lá o anjo só entra se for convidado e lhe abrirmos o coração.
"Enviado por Deus para nos servir" (Hb 1,14), alguma coisa real o anjo terá que fazer em nosso favor. Com ordem divina para nos ajudar, com vontade de socorrer, com possibilidade de auxiliar, com inúmeras oportunidades para isso, o anjo de fato nos favorece na medida em que nele confiarmos e a ele nos abrirmos. Mas também com relação aos anjos parece valer a admoestação do apóstolo: "Não apagueis o espírito" (1Ts 5,19). Desgraçadamente, pode o homem "apagar o espírito", anular sua ação, fechar-se em orgulhosa auto-suficiência, não querer o auxílio do anjo, não confiar nele, não rezar a ele, ignorá-lo, desprezá-lo, pode até negar sua existência. Devemos estar abertos para a ação do anjo, confiar nele, dar-lhe oportunidades, manifestar-lhe nossos pensamentos e desejos íntimos, querer receber suas iluminações, manter com ele verdadeiras relações de amizade: ele quer ser nosso companheiro e amigo!

14. O DIABO E SEUS DEMÔNIOS

A palavra "diabo" vem do grego diábolos, usado para traduzir o satan hebraico, que significa adversário. Já a velha "serpente" do Gênesis (3,1) ocultava um ser inteligente e astuto, superior ao homem e inimigo de Deus. Nela a Sabedoria (2,24) e depois o Apocalipse (12,9; 20,2) e toda a tradição cristã reconheceram o adversário, o diabo. 
É bastante comum afirmar que a crença em espíritos, bons (anjos) e maus (demônios), seria um elemento constitutivo de toda cultura sacral; e que Jesus, vivendo numa cultura deste tipo, dela teria recebido a crença nos., espíritos. Mas isso não corresponde à verdade histórica. 
Pelos Atos dos Apóstolos somos informados que os saduceus não admitiam, contra a opinião dos fariseus, "nem ressurreição, nem anjo, nem espírito" (23,8). Portanto, no contexto cultural e histórico de Jesus de Nazaré, a opinião de seus contemporâneos estava dividida em concepções diametralmente opostas. Não se pode afirmar que, neste ponto, Jesus e os apóstolos teriam simplesmente adotado, sem nenhum esforço crítico, idéias e práticas de seu ambiente. 
À luz dos quatro evangelhos não há dúvida nenhuma de que o próprio Jesus ensinou a existência do diabo como entidade real de ordem espiritual, um ser inteligente e ativo, contrário à dilatação do reinado de Deus nos corações dos homens. O diabo era seu grande adversário. A luta é constante e atravessa os evangelhos do começo ao fim. Jesus iniciou seu ministério público aceitando ser tentado pelo diabo (cf. Mt 4,1-11; Mc 1,12-13; Lc 4,1-13). No sermão da montanha (Mt 5,37) e no Pai-nosso (Mt 6,13) lembra as possíveis tentações do maligno. Nas parábolas atribui ao diabo os obstáculos que encontrava em sua pregação (Mt 13,19), como no caso da cizânia semeada no campo (Mt 13,39). A Simão Pedro anunciou que "as portas do inferno" procurarão prevalecer sobre a Igreja (Mt 16,19) e que Satanás procurará "peneirá-los
como trigo" (Lc 22,31). No momento de deixar o cenáculo, Jesus declara iminente a vinda do "príncipe deste mundo" (Jo 14,30). No Getsêmani, ao ser preso, afirma que havia chegado a hora do "poder das trevas" (Lc 22,53); mas ele também sabia, e o havia declarado pouco antes no cenáculo, que "o príncipe deste mundo já está julgado" (Jo 16,11).
Ao curar os endemoninhados, Jesus vence o diabo. Em sua atuação, mostra ter um poder extraordinário que causa a admiração do povo (Mt 12,23) e escandaliza seus adversários, que o julgam também possesso e com poderes de chefe dos demônios (Mc 3,22-30). Ele manifesta que seu poder é do "espírito de Deus" que vence os demônios (Mt 12,25-28). Aliás, segundo Ap 12,7-9, o diabo e os demônios formam um exército rebelde contra Deus. 
Mas Jesus não somente luta contra a ação dos demônios, ele também descreve um reino de Deus em luta constante contra os poderes do mal (cf. Mc 4,15; Lc 8,12 etc.).
Daí a grave exortação de são Pedro: "Eis que vosso adversário, o diabo, vos rodeia como um leão a rugir, procurando a quem devorar. Resisti-lhe, firmes na fé" (1Pd 5,8-9). O autor da carta aos efésios propõe todo um plano de combate espiritual (6,10-17):
- "Fortalecei-vos no Senhor e na força do seu poder. Revesti-vos da armadura de Deus, para poderdes resistir às insídias do diabo. Pois o nosso combate não é contra o sangue nem contra a carne, mas contra os principados, contra as autoridades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra os espíritos do mal, que povoam as regiões celestiais. Por isso deveis vestir a armadura de Deus, para poderdes resistir no dia mau e sair firmes de todo o combate. 
Portanto, ponde-vos de pé e cingi os vossos rins com a verdade e revesti-vos da couraça da justiça e calçai os vossos pés com a preparação do evangelho da paz, empunhando sempre o escudo da fé, com o qual podereis extinguir os dardos inflamados do maligno. E tomai o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus".
Quando voltaram de sua missão, os discípulos informaram a Jesus: "Senhor, até os demônios se nos submetem em teu nome!" E Jesus confirmou a realidade desta vitória: "Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago!" (Lc 10,17-18).
Nas Cartas de são Paulo esta vitória sobre Satanás é vigorosamente sublinhada. Nelas se considera o drama redentor como o conflito supremo entre as potências do mal e Jesus Cristo. 
Os príncipes deste mundo "crucificaram o Senhor da Glória" (1 Cor 2,8). Justamente lá onde queriam triunfar, sofreram a derrota: Deus "despojou os principados e as potestades, expondo-os em espetáculo, levando-os em cortejo triunfal" (Cl 2,15).
É manifesto que a Igreja, que recebeu a missão de continuar a obra de seu Senhor, não podia ignorar tudo isso. O problema principal, posterior, não estava na afirmação da existência do diabo e de seus demônios, doutrina que de fato ninguém negava, mas na reflexão sobre sua origem e natureza. A dificuldade começou com Mani (216-277), fundador do maniqueísmo, que ensinava um rígido dualismo. Sustentava Mani que desde toda a eternidade há dois princípios supremos: o da luz (o bem) e o das trevas (o mal); e que o diabo e seus emissários emergiram das trevas e são maus por sua própria origem e natureza. Contra esta concepção dualista reagiu fortemente a Igreja, sobretudo a partir do século IV, ensinando que também o diabo é criatura do único Deus e que foi criado bom e se faz mau pelo pecado.
Já Jesus havia explicado que o diabo "não permaneceu na verdade" (Jo 8,44). São Judas fala em sua Carta (v. 6) dos "anjos que não conservaram sua dignidade, mas abandonaram sua morada". E são Pedro informa: "Deus não poupou os anjos que pecaram" (2Pd 2,4). Mas estes textos não nos revelam a natureza do pecado dos anjos. Antes do pecado, porém, eram anjos bons e como tais foram criados por Deus.
Depois de Prisciliano (340-385), seus seguidores repetiram e divulgaram os mesmos erros de Mani. O Concílio de Braga, Portugal, em 563, fez então a seguinte declaração: "Se alguém disser que o diabo não foi antes um anjo bom, feito por Deus, e que sua natureza não foi obra de Deus, senão que emergiu do caos e das trevas e que não existe um autor de seu ser, mas que ele mesmo é o princípio e a substância do mal, como afirmam Mani e Prisciliano, seja anátema". 
No século XII o dualismo maniqueu reapareceu com os movimentos dos cátaros e albigenses. O Concílio ecumênico de Latrão IV (1215), sob o papa Inocêncio III, fez então a seguinte profissão de fé:
- "Firmemente cremos e simplesmente confessamos... um só princípio de todas as coisas, das visíveis e das invisíveis, espirituais e corporais, que, por sua onipotente força, desde o princípio do tempo criou simultaneamente do nada uma e outra criatura, a espiritual e a corporal, isto é, a angélica e a mundana, e depois a humana, como comum, composta de espírito e corpo. Porquanto o diabo e os demais demônios certamente foram por Deus criados bons por natureza; porém eles se fizeram maus por si mesmos. Mas o homem pecou por sugestão do diabo".
Esta profissão da fé cristã é sóbria. Limita-se o Concílio a afirmar que, sendo criaturas do único Deus, o diabo e os demônios não são substancialmente maus, mas se fizeram tais por sua livre vontade. Alguns anos antes, em 1208, os valdenses deviam professar: "Cremos que o diabo se fez mau não por sua natureza, mas pelo arbítrio". Donde se pode inferir que não foram criados no estado de glória e confirmados no bem; mas foram constituídos em estado de graça, no qual pecaram sem jamais terem tido a visão beatífica. Conclui-se ainda que o diabo deve ser uma pessoa (pois tem livre-arbítrio), é alguém, e não um mero símbolo (impessoal) do mal, como ultimamente alguns tentaram insinuar.
Depois do pecado, houve condenação: o inferno deles é o mesmo que o dos réprobos:
"Fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos" (Mt 25,41). Eterno, no sentido de duração sem fim e sem atenuação. Contra uma opinião de Orígenes lançou a Igreja o seguinte anátema: 
"Se alguém disser ou sentir que o castigo dos demônios e dos homens ímpios é temporal e que em algum momento terá fim, ou que se dará a reintegração do demônio ou dos homens ímpios, seja anátema" (Sínodo de Constantinopla, em 543).
Nos nossos dias o Concílio Vaticano II ensina na Constituição Gaudium et Spes (n. 37b):
"Uma luta árdua contra o poder das trevas perpassa a história universal da humanidade. Iniciada desde a origem do mundo, vai durar até o último dia, segundo as palavras do Senhor. Inserido nesta batalha, o homem deve lutar sempre para aderir ao bem; não consegue alcançar a unidade interior senão com grandes labutas e o auxílio da graça de Deus".
O diabo e seus demônios receberam de Deus uma relativa liberdade para tentar e hostilizar os homens. Já os nomes dados ao diabo na Bíblia são funcionais: ele é o inimigo, o mau, o maligno, o tentador, o príncipe deste mundo, o deus deste século, o grande dragão, a serpente antiga, o caluniador, o adversário. Ele é homicida desde o princípio e pai da mentira, autor do ódio e do orgulho, ronda por toda parte procurando a quem devorar, toma as aparências de anjo da luz, surrupia a semente divina dos corações. Os santos padres, a liturgia e os autores clássicos lhe atribuem mil ações sobre os homens: ele seduz, instiga, engana, mente, corrompe, enreda, atormenta, aflige, amofina, divide, opõe, separa, dissipa, entrava, complica, fanatiza; ele é astuto e atrevido: não força, propõe, sugere, persuade; tenta o asceta, atiça o cobiçador, aperreia o intelectual, atrai o ingênuo, capta em suas armadilhas os imprudentes e os presunçosos, insufla
os cismas, suscita as heresias, conspurca a santidade, deforma todo o bem, intriga sem cessar, fomenta a guerra, trama os crimes, endossa as injustiças, semeia ruínas, faz brilhar as aparências...
Na exortação apostólica Reconciliatio et paenitentia, de 2-12-1984, o papa João Paulo II nos recorda que "por dentro da realidade da experiência humana agem fatores, pelos quais ela se situa para além do humano, na zona limite onde a consciência, a vontade e a sensibilidade do homem estão em contato com forças obscuras que, segundo são Paulo, agem no mundo até ao ponto de quase o senhorearem (cf. Rm 7,7-25; Ef 2,2; 6,12)".
No dia 15-11-1972, o papa Paulo VI, falando sobre o mistério do mal presente no mundo, declarou: "O mal não é apenas uma deficiência, mas eficiência, um ser vivo, espiritual, pervertido e perversor. Trata-se de uma realidade terrível, misteriosa, medonha. Sai do âmbito dos ensinamentos bíblicos e eclesiásticos quem se recusa a reconhecer a existência desta realidade; ou melhor, quem faz dela um princípio em si mesmo, como se não tivesse, como todas as criaturas, origem em Deus, ou a explica como uma pseudo-realidade, como uma personificação conceitual e fantástica das causas desconhecidas de nossas desgraças".
Indicava então o Papa os seguintes sinais da presença diabólica: "Podemos admitir a sua atuação sinistra, onde a negação de Deus se torna radical, sutil ou absurda; onde o engano se revela hipócrita, contra a evidência da verdade; onde o amor é anulado por um egoísmo frio e cruel; onde o nome de Cristo é empregado com ódio consciente e rebelde (ci. 1 Cor 16,22; 12,3); onde o espírito do Evangelho é falsificado e desmentido; onde o desespero se manifesta como a última palavra... "
Mas não devemos cair no demonismo, que vê no diabo a causa de todos os males que nos afligem. É certo que muitos males que antigamente iam por conta do diabo recebem hoje explicação adequada e satisfatória sem nenhuma necessidade de intromissões diabólicas. Na Gaudium et Spes constata o Concílio Vaticano II que hoje "o espírito crítico mais agudo purifica a vida religiosa de uma concepção mágica do mundo e de superstições ainda espalhadas" (n. 7c); e que "muitos bens que o homem aguardava antigamente, sobretudo de forças superiores, hoje já os consegue pelo trabalho próprio" (n. 33b). A ciência desmitificou e dessacralizou os fenômenos da natureza e baniu os deuses, os demônios e as superstições. Já não sentimos
nenhuma necessidade do demônio como hipótese para explicar a origem e a existência do mal no mundo. Na medida em que progridem nossos conhecimentos científicos sobre a natureza e o homem, diminui o recurso ao exorcismo, que se torna cada dia menos indicado e mais suspeito. 
Por isso é preciso dizer com muita insistência que nem todas as fantasias que vinte séculos de vida cristã acrescentaram à figura bíblica do diabo pertencem ao depósito de nossa fé, nem mesmo da fé católica, que neste ponto é talvez a mais explícita. As fantasias dos pintores, dos poetas, dos romancistas, do povo e mesmo dos pregadores foram muitíssimo além dos ensinamentos solenes dos Concílios ecumênicos ou pronunciamentos oficiais dos bispos de Roma. É certo que nossa qualidade de cristãos nos obriga a aceitar a existência e a atividade do diabo entre os homens. Mas de um demônio que em tudo continua dependente de Deus, que não permite sejamos tentados acima de nossas forças (ci. 1 Cor 10,13).
A aceitação desta doutrina cristã não traz necessariamente consigo a aceitação também de possíveis ações mágicas realizadas com o auxílio do diabo. Pois semelhante ação mágica supõe a possibilidade de uma intervenção diabólica provocada pelo homem (mediante o mago, o feiticeiro ou o bruxo). Ora, como cristão, admitimos possíveis intervenções espontâneas do demônio (e mesmo assim só com a expressa permissão divina), mas não intervenções diabólicas provocadas pelo homem. Não há uma só passagem da Bíblia nem um só ensinamento solene do Magistério da Igreja que insinue a possibilidade de intervenções diabólicas provocadas pelo homem. A Bíblia sem dúvida proíbe as práticas da magia. No ambiente bíblico do Antigo Testamento a magia fazia parte da vida cotidiana. A religião dos sumerianos, dos babilônios e
dos assírios era visceralmente mágica. Amuletos, talismãs, fórmulas e ritos mágicos serviam para afastar obstáculos e trazer os bens e as satisfações do corpo, do coração e do espírito. Mas constantemente a magia ou qualquer outra forma de práticas de necromancia são severamente condenadas na Sagrada Escritura. Os profetas atacam e ridicularizam a magia, principalmente dos egípcios e babilônicos (cf. Is 47,12-22; Dn 1,20; 2,10-12; Sb 17,7). O importante, porém, é que nem uma única vez é o demônio alegado para tão rígida proibição. Na página 57 já resumi as razões bíblicas.
O diabo, na verdade, também ele criatura de Deus, depende do Criador e nada pode fazer sem a permissão divina. Jesus fez esta revelação a Pedro: "Simão, Simão, eis que Satanás pediu insistentemente para vos peneirar como trigo; eu, porém, orei por ti, a fim de que tua fé não desfaleça" (c 22,31). O diabo também reza! Também deve pedir a Deus e só poderá atuar na medida da autorização recebida. Para que o diabo possa atuar, não basta a má vontade de um feiticeiro que o invoque ou evoque. Neste sentido é lícito concluir que a magia, como efeito causado pelo diabo para prejudicar uma pessoa, é impossível.
Deus, que nos criou, não nos abandonou. Ele não nos deixou entregues a nós mesmos, ou às leis da natureza, ou a algum destino cego, ao fatalismo ou determinismo de misteriosas e imaginadas forças astrais, ou aos caprichos dos espíritos do além. Contra todas as formas de fatalismo, a fé cristã afirma o domínio e o senhorio absoluto de Deus sobre a inteira criação. O ser das coisas criadas, também do homem, é sempre um ser contingente, que não tem em si mesmo a razão de sua existência e depende do Criador também na
sua conservação. Em Deus "vivemos, nos movemos e existimos", explicava são Paulo aos atenienses (At 17,28).
O cristão crê na divina providência. O próprio Jesus Cristo nos deixou esta bela página (d. Mt 6,25-34):
- "Não vos preocupeis com a vossa vida, quanto ao que haveis de comer, nem com o vosso corpo, quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento e o corpo mais do que a roupa? Olhai as aves do céu: não semeiam, nem colhem, nem ajuntam em celeiros. E, no entanto, vosso Pai Celeste as alimenta. Ora, não valeis vós mais que elas? Quem dentre vós, com as suas preocupações, pode prolongar, por pouco que seja, a duração da sua vida? E com a roupa, por que andais preocupados? Aprendei dos lírios do campo, como crescem, e não se matam de trabalhar, nem fiam. E, no entanto, eu vos asseguro que nem Salomão, em todo o seu esplendor, se vestiu como um deles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que existe hoje, e amanhã será lançada ao forno, não fará ele muito mais por vós, homens fracos na fé? Por isso, não andeis preocupados, dizendo: 'Que iremos comer? Ou, que iremos beber? Ou que iremos vestir?' De fato, são os gentios que estão à procura de tudo isso: o vosso Pai Celeste sabe que tendes necessidade de todas estas coisas. Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas. Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã se preocupará consigo mesmo. A cada dia basta o seu mal". Jesus nos ensina a considerar a Deus como Pai, para acentuar um tipo especial de relacionamento com os homens. Expressões como "vosso Pai", "teu Pai", "Pai Celestial", "vosso Pai que está no céu", indicam uma atitude benéfica, amorosa para com todos os homens. É um Pai que quer que os homens se pareçam com ele: que sejam misericordiosos, justos, generosos, que tenham sua maneira de ser.
No Antigo Testamento, o profeta Isaías já fizera a comparação com a mãe: "Pode porventura a mulher esquecer-se do seu filho e não ter carinho para com o fruto das suas entranhas? Pois ainda que a mulher se esquecesse do próprio filho, eu (Iahweh) jamais me esquecerei de ti!" (Is 49,15).
O apóstolo são João insiste nesta concepção: "Deus é amor" (1Jo 4,8.16). Amor que se dá e comunica: "Pois Deus tanto amou o mundo, que lhe entregou o seu filho único" (Jo 3,16). 
Amor capaz de transformar os homens em filhos de Deus: "Vede que prova de amor nos deu o Pai, que sejamos chamados filhos de Deus e de fato o somos" (1 Jo 3,1).
No Antigo Testamento mais de seis mil vezes Deus é designado com o tetragrama lahweh (literalmente: eu sou), revelado a Moisés (cf. Ex 3,1-16). Com este nome queria Deus indicar não apenas sua essência eterna e imutável, mas também sua presença atuante entre os homens, disposto a intervir, a ajudar, a libertar, a salvar. Deus se revela por sua presença, por sua ação na história, nos acontecimentos, na tribulação dos egípcios, no milagre do mar Vermelho, na peregrinação pelo deserto, na aliança do Sinai, na posse da terra prometida. 
Iahweh é o Emanuel, que quer dizer "Deus conosco" (cf. Mt 1,23).
Como para o povo de Deus do Antigo Testamento, Deus era concretamente "o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó", assim, para o povo de Deus do Novo Testamento, Deus é "o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo" (Rm 15,6; 2Cor 1,3; Ef 1,3 . 17). E o Deus de Jesus Cristo é um Deus que vai à procura do homem perdido. É um Deus que sabe que nenhum homem é capaz de encontrá-Lo por suas próprias forças, que todos estão perdidos, caso ele mesmo não tome a iniciativa. É a bondade de Deus para com os extraviados, os pecadores, os lesados, e miseráveis, que é o traço comum nas parábolas da ovelha perdida, da dracma perdida, dos dois devedores, do filho pródigo, do patrão bondoso, do fariseu e do publicano, textos maiores do Evangelho. Segundo o modo de ver humano, o procedimento divino pareceria injusto ou insensato. Nós homens não procederíamos como o Deus de Jesus. Ele é surpreendente em seus caminhos de amor, bondade e misericórdia. 
Contra todas as tendências panteístas, que identificam Deus com o mundo, a fé cristã afirma constantemente a absoluta transcendência de Deus; e contra todas as tendências deístas, que imaginam um Deus distante do mundo, a fé cristã sustenta sua presença em cada ser humano.
Ensina-nos o recente Concílio Vaticano II que o ser humano não é uma partícula anônima da natureza, pois por sua interioridade profunda é superior ao universo inteiro: "A esta profunda interioridade o homem retoma quando entra em seu coração, onde o espera Deus, escrutador dos corações, e onde ele pessoalmente, sob os olhares de Deus, decide seu próprio destino" (Gaudium et Spes, n. 14b). É lá, nas profundezas do ser humano, que o Deus transcendente se torna "Deus conosco", Emanuel; é lá também onde se realiza o misterioso encontro de cada ser humano com Deus; é lá que Deus o espera. Mais adiante, no n. 16, o mesmo documento conciliar fala do lugar mais profundo da consciência, "núcleo secretíssimo e o sacrário do homem, onde ele está sozinho com Deus e onde ressoa sua voz".
Em outro documento (Presbytero rum Ordinis n. 11, nota 6), o Concílio faz suas as palavras de Paulo VI, que se refere ao "inefável do fascínio interior que a 'voz silenciosa' e poderosa do Senhor exerce nas insondáveis profundezas da alma humana".
O homem não necessita sair de si para buscar os vestígios de Deus na natureza e assim ter um conhecimento de sua existência: ele conhece a Deus, porque o encontra em si mesmo, presente, falante, chamante, expectante... 
No documento de Puebla, de 1979 (n. 275-279), os bispos latino-americanos indicam três diferentes atitudes humanas perante Deus e a construção da história humana:
- Há os passivistas, que acham não poder e não dever intervir, esperando que Deus atue e liberte. Entendem mal a doutrina cristã sobre a divina providência. 
- Há os ativistas, que consideram Deus distante, como se houvesse entregue a completa responsabilidade da história aos homens. Entendem mal a doutrina bíblica sobre o homem como senhor e aperfeiçoador da criação.
- A atitude de Jesus: nele culminou a sabedoria ensinada por Deus a Israel, que havia encontrado Deus em meio de sua história para forjá-la em aliança com Deus. Deus assinalava o caminho e a meta, mas exigia a livre e confiante colaboração do homem. 
Esta é a atitude cristã: Deus nos chama para atuar em aliança com ele: Deus conosco.
O Pai nos enviou o Filho. E o Filho se fez homem e habitou entre nós, morreu e ressuscitou para nos redimir e santificar; e voltou ao Pai. Mas não nos deixaria órfãos: deu-nos o Espírito Santo, "para que convosco permaneça para sempre" (10 14,16): "Ele vos recordará tudo o que eu vos disse" (10 14,26).
Assim, "Deus coopera em tudo para o bem daqueles que o amam, daqueles que são chamados segundo o seu desígnio. Porque os que de antemão ele conheceu, esses também os predestinou a serem conformes à imagem do seu Filho, a fim de ser ele o primogênito entre muitos irmãos. E os que predestinou, também os chamou; e os que chamou, também os justificou; e os que justificou, também os glorificou" (Rm 8,28-30). 

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Fonte:

Espiritismo – orientação para católicos
Frei Boaventura Kloppenburg





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