LITURGIA DOS FUNERAIS
Ofícios fúnebres
Funerais
vem da palavra “funus”, que por sua vez deriva de “funalia”, tocha, porque
outrora se faziam os enterros à noite, e eram acompanhados com tochas acesas
ou archotes. O cristianismo purificou esta cerimônia pagã, santificando-a com
as luzes empregadas nos ofícios fúnebres, mas as luzes agora simbolizavam, diz
São João Crisóstomo, alegria e esperança na ressurreição da carne.
Nos
primeiros dias do cristianismo, na época das perseguições, a cerimônia do
sepultamento dos mártires era festiva e tinha uma nota de alegria e de
triunfo. Era a festa da entrada do céu e da glorificação dos que sofreram e
morreram por Cristo. “Os mártires, dizia São Cipriano, passavam da prisão para
a imortalidade. De carcere ad immortalitatem transibant. Assim, o dia da morte
era celebrado como dia de festa. Adornava-se festivamente o vestibulo da casa
mortuária com guirlandas e coroas, escreve São Gregorio Nanzianzeno, e o
interior era decorado com verduras, flores e tapeçarias e fachos de luz. Tal
eram os funerais dos primeiros cristãos. Os de hoje são bem diferentes. Já não
têm mais a nota festiva.
São
tristes, são lúgubres. Por quê? Os mártires eram heróis que triunfavam e tinham
garantida a salvação, eram santos.
Os
primeiros cristãos eram de um fervor admirável. Morriam mártires da fé, ou
deixavam esta vida após muita penitência e uma vida muito santa. Havia razão
para que a morte deles fosse um triunfo, assim como hoje a Igreja celebra os
funerais das criancinhas que morrem com a inocência batismal. Depois,
infelizmente, se introduziram relaxamentos e fraquezas nos costumes, e a Igreja
temia a sorte dos seus filhos mortos sem uma penitência suficiente, e sem
aquele fervor e santidade dos seus filhos primeiros da era gloriosa e santa
dos mártires. Eis porque desde Orígenes, a quem Santo Agostinho atribui a
ordem no Ofício dos mortos, se introduziu o espírito de satisfação à Divina
Justiça pelos mortos, e esta pompa fúnebre que chora sobre os mortos implorando
para eles a divina clemência[1].
O espírito
festivo foi conservado apenas nos funerais das crianças. Nos funerais dos
adultos a Igreja quer nos lembrar o dogma do purgatório, quer implorar nossas
súplicas pelos que padecem no lugar da expiação. Abreviar ou aliviar este
sofrimento, eis o objeto dos ritos fúnebres e de todas as suas preces.
Os antigos,
disse São Gregorio de Nisse, embalsamavam os corpos para os sepultar. O
cristianismo faz coisa melhor: “embalsama a sua memória e os envolve no perfume
das orações e das comemorações”[2].
A oração
pelos mortos é muito antiga na Igreja.
São
Cipriano de Jerusalém, Santo Agostinho e ainda Tertuliano, asseguram que no
seu tempo se faziam preces pelos mortos na convicção de que a oração dos vivos
aliviava os mortos.
A Igreja,
nossa Mãe, nos acompanha carinhosa e cheia de ternura até a sepultura, e nos
segue além-túmulo com suas orações e com o sufrágio dos funerais.
O sentido dos funerais
Três idéias
principais claramente percebemos em todos os ofícios fúnebres da Liturgia da
Igreja. A primeira, lembrar aos vivos as angústias e os tormentos nos quais a
maior parte dos que faleceram expiam suas faltas no purgatório; segunda,
excitar em favor dos mortos a compaixão e a caridade dos vivos; terceira,
afirmar a idéia consoladora da ressurreição da carne.
Tais são as
idéias dominantes de todos os ofícios fúnebres.
Lembra as
angústias e tormentos do purgatório quando implora, por exemplo, nesta prece:
“Senhor, não entreis em juízo com o vosso servo sem que estejais disposto a
conceder-lhe a remissão de todos os seus pecados, pois nenhum homem se
encontrará justo diante de Vós. Nós Vos suplicamos, Senhor, que a sentença do
vosso Juízo, não esmague aquele por quem pede esta oração feita com fé
verdadeiramente cristã, mas que com o socorro da vossa graça ele, que durante a
sua vida foi marcado com o sinal da Santíssima Trindade, consiga evitar a
sentença do vosso Juízo”.
Depois,
recorda o Juízo tremendo em que se moverão o céu e a terra. É o Libera me,
Domine! Há na oração final uma expressão que nos mostra o sofrimento do
purgatório. Dá-nos a idéia de que o defunto está como que sufocado e aflito,
sem poder respirar o ar do céu, à espera da libertação: “Livrai, Senhor, a
alma do vosso seno ou serva, de todo o vínculo dos seus delitos, a fim de que
na gloriosa ressurreição, tornando a viver na sua carne, possa respirar entre
os vossos Santos e escolhidos”.
E muitas
vezes repete a Igreja: Requiescat in pace! Descance em paz!
Senhor, não
entreis em juízo com vosso servo! Que súplica esta impressionante e comovedora!
Chegando ao cemitério, prossegue o sacerdote: Senhor, nós vos suplicamos,
dignai-vos usar misericórdia para com vosso servo defunto. Que ele não tenha
de sofrer as penas dos seus pecados, pois ele desejou cumprir a vossa vontade,
e que assim como neste mundo o uniu a sociedade dos fiéis, assim também, lá no
céu a vossa misericórdia o associe aos coros dos Anjos.
Sempre a
idéia caridosa de implorar misericórdia pelos mortos que padecem no
purgatório! O Ofício dos defuntos é um gemido de dor sobre a miséria da pobre
criatura humana, lembrando as lamentações de Jó, tão impressionantes, naquele
realismo que abala a nossa alma e parece um gemido saído dos abismos do
purgatório. Que antífonas tocantes e piedosas! Aqui é um brado de misericórdia
pelos que sofrem na expiação, ali um ato de fé na ressurreição da carne, acolá
uma lembrança da miséria humana. Enfim, no Ofício dós mortos, nos funerais dos
cristãos, filhos da Santa Igreja, encontraremos, como disse acima, as três
notas impressionantes e de uma eloquência sem igual: a lembrança dos tormentos
do purgatório, grito de súplica pelos fiéis defuntos que gemem na expiação,
recordando o Juízo tremendo de Deus e a miséria do homem, e a esperança na
ressurreição da carne. Procuremos ler em vernáculo o Ritual dos defuntos.
Meditemos aquelas orações e antífonas, enfim todas as impressionantes lições
desta Liturgia.
As lições dos funerais
São muito
belas e impressionantes as lições que nos dá a Igreja com os funerais de seus
filhos. Já vimos como recorda o sofrimento do purgatório, a necessidade de orar
pelos mortos e o dogma da ressurreição da carne. Há, porém, outras lições
nestes funerais, que sempre assistimos talvez indiferentes porque não os
meditamos, ou ignoramos. O cadáver é guardado com todo respeito e veneração.
Não é o nosso corpo, como diz São Paulo, o templo do Espírito Santo? Não recebeu
ele as unções do Batismo e água regeneradora? Não foi o Sacrário vivo da Santa
Eucaristia? Não foi o instrumento da Graça, santificado pelos Sacramentos?
A Igreja
nos lembra o que é nosso corpo e quer que o respeitemos. Proíbe a incineração
dos cadáveres e não admite que se profanem os corpos de seus filhos. Leva este
cadáver ao templo, cerca-o de luzes, incensa-o, trata-o como coisa sagrada.
Depois o acompanha ao túmulo com orações, benze a sepultura, dizendo: “Ó
Deus, de cuja misericórdia dá repouso às almas dos fiéis, dignai-vos benzer
esta sepultura e enviar o vosso Anjo da guarda para a guardar. Dignai-vos
livrar dos laços dos seus pecados as almas daqueles cujos corpos estão aqui
sepultados, a fim de que gozem incessantemente e eternamente a felicidade
junto com vossos Santos”.
Que respeito
pelo nosso corpo!
Respeitemos
nosso corpo, que um dia há de ser objeto de tanta veneração nos funerais. Não
profanemos pelo pecado, sobretudo pela impureza, este templo sagrado do
Espírito Santo. O Apóstolo São Paulo recomenda tanto este respeito pelo nosso
corpo!
Lembremo-nos
do Juízo de Deus, tremendo e rigoroso, como nos lembra a Igreja implorando
misericórdia e gemendo por nós quando nossa pobre alma comparece diante do
Tribunal Divino! Que contas daremos a Deus? Ouvi o Dies Irae, este hino que nos
veio da Idade Média e nos recorda o tremer no Juízo de Deus e nossas
responsabilidades! A Liturgia da Missa dos defuntos o trás sempre, para
associar a idéia do sufrágio dos mortos a do Juízo, e assim excitar nossa
compaixão pelos mortos e despertar nossa alma para uma vida melhor com a
lembrança dos Novíssimos.
Estes
pensamentos devem ser os nossos, quando acompanhamos nossos mortos à sepultura,
quando assistimos aos ofícios fúnebres. É muito triste vermos a indiferença e
a displicência com que se assistem aos funerais hoje! Quanta profanação!
Conversas nos enterros, onde se discutem política e interesses de negócios,
sorrisos e desrespeito. Preocupação de pompas fúnebres e descuido da oração e
das exéquias. Para que tantas flores e tantos túmulos pomposos? Ó, se
aprendêssemos na escola admirável da Liturgia da Igreja estas sublimes e
impressionantes lições!
Seria
utilíssimo que nos retiros espirituais que fazemos, ao meditarmos na morte,
recordássemos a Liturgia dos funerais. Como se presta à meditação e nos ensina
tanta coisa para reforma de nossa vida! Todos os Novíssimos aí são lembrados: a
Morte, o Juízo — tantas vezes com o “Libera me” e o “Dies Irae” — o Inferno e o
Paraíso, para o qual nos manda — In paradiso deducant te angeli... Que lições!
Exemplo
Caridade recompensada
Deus nos
concede muitas graças na sua misericórdia quando somos generosos para com Ele.
Muito alcança em favor das pobres almas do purgatório quem oferece por elas
sacrifícios e orações, porém, um ato heróico de virtude pode ser um alívio
poderoso no purgatório. Contam diversos autores fidedignos e entre eles Santo
Antonino de Florença, este exemplo edificante:
Uma senhora
viúva tinha um filho único, estudante, e a quem amava ternamente e no qual
depositava todas as suas esperanças. Um dia, o moço, em companhia de outros
colegas se divertia, quando um estranho se pôs entre os rapazes e começa a lhes
perturbar os folguedos com provocações e inconveniências. O filho da viúva o
repreendeu severamente. O homem, indignado, puxou de um punhal e o enterrou no
coração do pobre moço, deixando-o estendido na rua, banhado em sangue. O
assassino foge, assustado, e ainda com o punhal em sangue entra na primeira
casa que encontra para fugir à perseguição da justiça. Qual não foi o seu
espanto ao saber que entrara justamente na casa da mãe de sua vítima!
A viúva
piedosa e cheia de carinho, compadecida do assassino o refugia e esconde-o da
policia que o procura. Vem a saber, dentro de poucos instantes, que protegia o
assassino do seu próprio filho! Sentiu um movimento de dor e de revolta. Era
boa cristã. Soube se conter heroicamente. Foi rezar. Ofereceu a Nosso Senhor o
sacrifício enorme de perdoar ao criminoso e foi procurá-lo, dizendo-lhe:
“Infeliz, mataste meu filho querido, único filho, todo meu coração! Era a luz
e a alegria de minha velhice, meu único apoio. Poderia te entregar à justiça e
me vingar. Não o farei. Prefiro a caridade do perdão pela alma de meu filho
saudoso. Vou te ocultar e depois te facilitarei a fuga e te livrarei da
justiça”.
O pobre
assassino caiu de joelhos, banhado em lágrimas, e quis se entregar à polícia. A
viúva não o permitiu. Fê-lo escapar da condenação. Era um ato heróico,
admirável!
Alguns dias
depois a pobre mãe rezava pela alma do filho saudoso, quando este lhe aparece
todo belo e esplendoroso. “Minha mãe, minha mãe, diz a bela visão, eu deveria
permanecer no purgatório muito tempo. Vosso ato de caridade para com meu
assassino e vossas esmolas e orações me abreviaram a pena e subo já para o
céu. Adeus, minha querida mãe! Até o céu!”.
Que
consolação para a pobre viúva! Sentiu ela a doce recompensa do seu ato heróico.
Perdoemos
nossos inimigos por amor e em sufrágio das almas do purgatório.
[1] Lerosey
— Simbolisme de La Liturgie.
[2] De orat
Domin. orat. I.
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Fonte:
Tenhamos
Compaixão das Pobres Almas!
30
meditações e exemplos sobre o Purgatório e as Almas, por Monsenhor Ascânio
Brandão
Livro de
1948 - 243 pags, Casa da U.P.C. Pouso Alegre
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