O PURGATÓRIO, A RAZÃO E O CORAÇÃO
Razões do purgatório
Qual a razão de ser do purgatório? É o pecado. É o obstáculo que impede a
alma de entrar no céu sem estar purificada e digna da visão beatífica. O pecado
mortal leva ao inferno. Separa para sempre a alma de Deus. Entretanto, veio o
perdão pela infinita misericórdia e o pecador arrependido muda de vida e não
mais volta aos seus desvarios. Todavia, não fez a devida penitência, não
reparou o seu crime neste mundo por uma penitência. Fica-lhe ainda uma dívida a
pagar à Divina Justiça. O pobre pecador culpado de muitas faltas veniais passa
desta para outra vida, vai prestar contas a Deus. Aquele Deus de todo
santidade, o Santo por excelência, a Justiça mesma, não quer condenar a quem
já perdoou, não há de perder quem, embora manchado de leves culpas, de muitas
imperfeições, não é todavia inimigo de Deus. Que há de fazer? Levá-lo para o
céu, onde nada pode entrar manchado? Impossível! Seria ter uma noção errada da
santidade e da infinita pureza de Deus, admitir este absurdo. Condenar às penas
eternas quem, embora tivesse pecado, não chegou à culpa mortal e não se separou
do Senhor porque não perdeu o estado de graça? Então para onde irá a alma
assim manchada e não de todo santa e perfeita para o céu? Eis a razão a nos
dizer: há de existir uma purificação além desta vida entre as duas eternidades,
um purgatório que nos livre do inferno e que seja o vestíbulo do paraíso, uma
expiação necessária para as almas. Pode-se ir para o purgatório por três
motivos: primeira, pelos pecados veniais não remidos ou perdoados neste
mundo; segundo, pelas inclinações viciosas deixadas em nossa alma pelo
hábito do pecado; terceiro, pela pena temporal devida a todo pecado mortal
ou venial cometido depois do batismo e não expiado ou expiado
insuficientemente nesta vida.
Depois da morte não há mais reparação nem penitência nem mérito. Havemos
de pagar a dívida de nossos pecados até o último ceitil, como diz o Evangelho.
Ora, é necessário o purgatório. É um dogma muito conforme à razão e bom
senso. A existência do purgatório, dizia o grande Conde De Maistre, se
apoia na natureza de Deus e na natureza do homem. Digo — na natureza de Deus.
Deus é Santidade, Justiça e Caridade. Como Santo, Deus não pode admitir união
entre a sua pureza infinita e nossas manchas. Como Deus, é bom, não pode deixar
perecer para sempre a obra das suas mãos que lhe implora o perdão. Daí a
necessidade de um lugar de expiação. A razão do purgatório também se baseia na
natureza do homem. Está na natureza humana procurar se purificar para ter um
alívio, porque a falta coloca o homem em desarmonia com seu fim último. Ora, a
alma não pode se purificar sem sofrimento, sem penas. O purgatório é esta
expiação, esta purificação que a alma procura. Para fazer cessar este desacordo
entre ela e Deus e torná-la apta para gozar da felicidade de Deus sem as
manchas de suas faltas. Eis aí como é racional e que harmonia no dogma do
purgatório!
Razões de sentimento
Vemos tantos entes queridos que deixaram esta vida, é verdade, em boas
disposições, mas como eram culpados de certas faltas e não haviam feito uma penitência
devida, receamos às vezes pela sua salvação. Todavia nos diz o coração que não
podiam se perder. Eram bons, tinham qualidades apreciáveis, foram talvez
caridosos e fizeram algum bem nesta vida. Admitir que estejam no céu depois de
tantas faltas e defeitos e ausência de penitência, não o podemos. Dizer que
estejam condenados, é muito duro, e, apesar de tudo, como poderiam ter se
perdido almas tão caridosas e boas e que fizeram algum bem neste mundo? A
idéia do purgatório se impõe necessariamente à nossa razão antes de se impor à
nossa fé.
Escreve o Pe. Faber: “O purgatório explica os enigmas deste mundo.
Dá solução a uma multidão de dificuldades. Em face deste sistema, que poderíamos
chamar o oitavo e terrível Sacramento do fogo que atinge as almas, às quais os
sete sacramentos não deram uma pureza perfeita. O purgatório é uma invenção de
Deus para multiplicar os frutos da Paixão de nosso Salvador e que Ele
estabeleceu prevendo a grande multidão de homens que deveriam morrer no amor
de Deus, mas num amor imperfeito. Não é uma continuação além-túmulo das
misericórdias prodigalizadas no leito de morte? Isto nos esclarece tanto e
nos faz supor que muitos católicos se salvam, principalmente os que viveram
neste mundo na pobreza, no sofrimento e nas provações”.
O dogma do purgatório também encontra fundamentos e raízes no coração
humano, escreveu Mons. Bougaud. É um intermediário entre a Justiça e a Misericórdia,
como o divino auxiliar do amor. Tirai o purgatório, e a justiça seria terrível.
Seria inexorável. Felizmente, esta aí o purgatório. O Amor infinito o criou.
O purgatório não serve apenas para temperar e satisfazer a justiça. Serve
também para dilatar a misericórdia. Serve para explicar a misericórdia de Deus
que se contenta, na hora da morte, com um pouco de arrependimento do pecador.
Não é pois consolador pensar na existência do purgatório, pelo qual se
poderão salvar tantas almas? A impiedade e a heresia, negando o dogma da
expiação além-túmulo, se põem contra a razão. O purgatório, diz ainda o
célebre Mons. Tiamer Toth, é a melhor resposta aos erros da reencarnação.
Há um sofrimento purificador depois desta vida. O cristianismo ensinou isto
muito antes que as filosofias nebulosas do Oriente semeassem na alma do homem
moderno o erro da reencarnação, que não tem a seu favor argumento de espécie
alguma. Também nós pregamos que há purificação além-túmulo! Esta purificação
se faz na justiça de Deus e com o fim de salvar uma alma por toda eternidade e
torná-la digna da Pureza Infinita, que é Deus. O purgatório é um combate aos
erros do espiritismo, porque nos manda orar e sufragar os mortos sem se
preocupar em conversar com eles, na certeza de que estão nas Mãos da Divina
Justiça e já não podem se comunicar com os vivos. Que dogma racional e de
quantos erros e superstições nos livra!
Nossos mortos
Havemos de chorar nossos mortos e a religião não nos pode proibir as
lágrimas tão justas, quando sentimos nosso coração ferido pelo golpe duro da
saudade. Todavia, havemos de chorar cristãmente nossos defuntos queridos. É
mister lembrar-se deles mais com orações e sufrágios do que com lágrimas estéreis.
O pensamento do purgatório é um consolo. Sabemos que podemos ainda auxiliar,
valer e socorrer nossos entes queridos. É bem possível que padeçam no
purgatório.
A religião de Nosso Senhor Jesus Cristo não proíbe que choremos os nossos
mortos queridos. Podemos, pois, render a estes o tributo de nossas lágrimas e
de nossas saudades. Com esta pobre natureza, como ficarmos insensíveis ante a
morte de um ente estremecido? Como nos custa ver arrebatados pela morte os
entes com quem convivemos, nosso pai, nossa mãe, nosso filho, nosso irmão,
nosso amigo!... A religião, se bem que nos ensine a ser fortes na dor e a
meditar na Paixão de Jesus Cristo, não nos veda aquelas lágrimas e saudades.
Ela não tem o estoicismo pagão, estúpido e antinatural. Pois Jesus não
chorou na sepultura de Lázaro? Não choraram, na Paixão, Maria e Madalena e
as Santas Mulheres? A religião nos permite chorar do mesmo modo os nossos
mortos. Quer apenas que o façamos, não como os pagãos, desesperados e
desiludidos, mas como quem tem esperança na vida eterna e crê na imortalidade.
Choremos a separação dolorosa, mas com a doce esperança de que, um dia, numa
pátria melhor, onde não haverá nem luto, nem dor ou sofrimento de qualquer
espécie, nem separação, tornaremos a ver todos aqueles que amamos aqui na
terra. Como essa esperança consola! O cristão não deve dizer com desespero,
ante o cadáver gelado de um ente querido: — “Nunca mais te verei! Adeus
para sempre!”. Não! Embora em pranto, suas palavras devem ser estas:
— “Até ao céu! Lá nos tornaremos a ver c seremos para sempre
felizes!”.
O dogma do purgatório, tão em harmonia com nosso coração, nos diz que
podemos ainda ajudar nossos mortos queridos para podermos dizer-lhes: até
o céu!
Exemplo
A Bem-aventurada Ana Taigi e o purgatório
Deus lhe revelou muitas vezes a sorte das almas do purgatório. Ela pedia
continuamente pelas pobres almas, num misterioso sol que sempre lhe aparecia,
foi uma grande mística do século XIX.
Em 30 de Maio de 1920, S.S. Bento XV declarava Bem-aventurada a
humilde e pobre mãe de família, que durante tanto tempo chamou a admiração de
Roma e do mundo com tantos prodígios sobrenaturais. A Beata Ana Taigi,
romana de nascimento, via todos os acontecimentos futuros e a sorte dos mortos.
Um homem, conhecido de Ana, morreu, e ela o viu nas chamas do purgatório,
salvo do inferno pela Divina Misericórdia, porque socorreu um pobre que o
importunava muito pedindo esmola. Viu um conde cuja vida se passou em delícias
e divertimentos, mas que na hora da morte teve um grande arrependimento e se
salvou, mas deveria sofrer no purgatório tormentos incríveis tanto tempo
quanto passou neste mundo sem se preocupar com a penitência e com a salvação
eterna.
Viu homens de grande virtude sofrendo porque se deixaram levar pela
vaidade e amor próprio, muito apegados aos elogios e à amizade dos grandes da
terra.
Um dia Nosso Senhor lhe disse: levanta-te e reza, meu Vigário na terra
está na hora de vir me prestar contas. Ana sufragou a alma do Papa e depois o
viu como um rubi ainda não de todo brilhante, pois lhe faltava se purificar
mais.
Faleceu em Roma o Cardeal Dória, que deixou grande fortuna, e
naturalmente celebraram-se por sua alma centenas de Missas. Foi revelado
à Beata Ana Taigi que as Missas celebradas por alma do Cardeal eram
aproveitadas para as almas dos pobrezinhos abandonados e que não tinham quem
mandasse celebrar por eles.
Via-se assim a Divina Justiça que não olha a riqueza nem as possibilidades
dos ricos em arranjar sufrágios, com descuido às vezes neste mundo da verdadeira
penitência.
Viu Ana no purgatório um sacerdote muito estimado por suas virtudes e
sobretudo pelas brilhantes pregações que fazia e o tornavam admirados de todos.
Sofria muito este pobre padre. Foi revelado à Beata que expiava a falta de
procurar com muito empenho a fama de bom pregador e um pouco de vaidade ao
pregar a palavra de Deus, sobretudo nas complacências com os elogios.
Viu dois religiosos muito santos no purgatório, em sofrimentos duros. Um
deles expiava o seu apego ao próprio juízo e pouca submissão ao modo de ver de
outros, e outro a dissipação, a falta de recolhimento e piedade no exercício
do ministério sacerdotal.
Enfim, a Beata Ana trouxe com a sua bela e impressionante mensagem do
sobrenatural no século XIX, muitas luzes sobre o purgatório e impressionantes
lições da Justiça de Deus, e também não há dúvida, da Infinita Misericórdia que
salva tantas almas pelas chamas expiadoras do purgatório.
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