O texto a seguir refere-se a uma conferência que S. João
Bosco fez, a 25 de junho e 1867, aos salesianos que estavam co ele no oratório. Depois de estabelecer horários e normas para o período de
férias dos seminaristas e falar do período nos ambientes natais, que
frequentemente têm o efeito de afastá-los da vocação. São João Bosco narrou o
sonho que segue. Nesta parte III, traduzimos fielmente um trecho do capítulo
LXXI do volume VIII das Memorie
Biografiche Del Venerabile Don Giovanni Bosco, coligadas pelo Pe. Giovanni
Batista Lemoyne S.D.B (tipografia S.A.I.D Buona Stampa, Turim. 1912, pag.
853-859)
Ontem à noite, depois
dos meus queridos jovens terem-se deitado, não conseguindo eu adormecer logo,
estava a pensar na natureza e no modo da existência da Alma:
Como ela era feita; de
que modo poderia encontrar-se e falar na outra vida, estando separada do corpo;
como faria para deslocar-se dum lugar para o outro; como nos poderemos
reconhecer uns aos outros depois da morte, não sendo então senão puros
espíritos.
E quanto mais pensava
nessas coisas, mais obscuro me parecia tal mistério.
Enquanto divagava por
essas ideias e outras semelhantes, adormeci..., e pareceu-me então que estava
na estrada que conduz a... (Dom Bosco nomeou a localidade), e que eu caminhava
nessa mesma direção.
Andei durante algum
tempo, atravessei lugares para mim desconhecidos, até que, em certo momento,
ouvi que alguém chamava pelo meu nome.
Era a voz duma pessoa,
parada na estrada:
– Vem comigo – disse-me
a estranha personagem – e poderás ver logo o que desejas!
Obedeci imediatamente.
Mas a pessoa andava com
a rapidez do pensamento, e eu no mesmo passo desse meu Guia. Andávamos de
maneira tal que os nossos pés nem tocavam no solo.
Chegados por fim a uma
certa região, que eu desconhecia, o Guia parou...
Erguia-se, sobre uma
proeminência do terreno, um magnífico palácio, de construção admirável.
Não sabia onde estava,
nem sobre qual montanha; nem me recordo mais se estava realmente numa montanha,
ou se estava no ar sobre as nuvens.
Era inacessível, e não
se via caminho algum para poder chegar até ao palácio.
As suas portas eram de
considerável altura...
– Sobe a esse palácio –
disse-me o Guia.
– Como vou fazer? –
observei eu. – Como fazer para subir? Aqui por baixo não há entrada, e eu não
tenho asas.
– Sobe! – replicou ele,
com autoridade. E vendo que eu não me movia, acrescentou:
– Faz como eu: Levanta
os braços, de boa vontade, e subirás. Vem comigo.
E assim dizendo,
levantou ao alto as mãos, dirigindo-as para cima.
Eu também abri os
braços, e senti-me logo alçado pelos ares, como uma nuvenzinha.
Eis que chego aos
umbrais do palácio, e o Guia acompanhou-me até lá.
– O que há lá dentro? –
perguntei.
– Entra, visita-o e
verás. Ao fundo, num salão, encontrarás quem te ensinará.
E ele desapareceu,
ficando só eu, como guia de mim mesmo.
Entrei no pórtico, subi
as escadas e cheguei a um salão verdadeiramente régio.
Percorri salas
espaçosas, aposentos riquíssimos de ornamentos, e longos corredores.
Caminhava com velocidade
muito acima da normal.
Cada sala brilhava com a
magnificência de tesouros espantosos, e naquela velocidade percorri tantos aposentos,
que me foi impossível contá-los.
Mas uma coisa era mais
admirável: para correr com a rapidez do vento, eu não movia os pés. Suspenso no
ar, com as pernas juntas, deslizava sem esforço, como sobre um cristal, mas sem
tocar no pavimento.
* * *
Passando assim de um
aposento a outro, vi finalmente, no fundo dum corredor, uma porta. Entrei e
encontrei-me num salão grande, que superava em magnificência todos os demais. No
fundo dele, sobre uma cadeira de espaldar alto, avistei um Bispo, majestosamente
sentado, em posição de quem se prepara para dar audiência. Aproximei-me com
respeito, e fiquei admiradíssimo por reconhecer naquele Prelado um íntimo amigo
meu:
Era Dom... (D. Bosco
disse o nome dele, etc.), Bispo de..., falecido há já dois anos.
Parecia sentir-se muito
bem, e o seu aspecto era radiante, afetuoso, e de tão grande beleza que eu não
consigo exprimi-la...
– Oh! Senhor Bispo, vós
por aqui? – perguntei, com grande alegria.
– Não me vê? – perguntou
o Bispo.
– Mas, como é isso?
Ainda estais vivo? Não morrestes?
– Sim, morri – respondeu
o Bispo.
– Se morrestes, como é
que estais sentado aqui, tão radiante e satisfeito? Se ainda estais vivo, por
caridade, esclarecei-me: Na Diocese de..., há já um outro Bispo, Dom..., no
vosso lugar. Como se explica tal confusão?
– Esteja tranquilo, e
não se preocupe, que eu já morri...
– Ainda bem que já está
outro Bispo no vosso lugar.
– Eu sei disso. E o
senhor Dom Bosco, está vivo ou morto?
– Eu estou vivo. Não
vedes que estou aqui, em corpo e alma?
– Aqui, não se pode ver
com o corpo.
– Mas, sem embargo, aqui
estou – respondi-lhe eu.
– Isso é o que lhe
parece; mas não é assim – disse-me ele...
E apressei-me em
falar-lhe, fazendo perguntas e mais perguntas, sem receber mais respostas...
Até que perguntei-lhe:
– Como pode ser que eu,
estando vivo, esteja aqui convosco, senhor Bispo, enquanto vós já morrestes?
Tinha receio de que o
Bispo desaparecesse pelo que lhe roguei:
– Senhor Bispo, por
caridade, não me deixeis. Preciso saber muitas coisas. Diga-me, senhor Bispo:
Salvastes a vossa alma?
O Bispo, vendo-me tão
ansioso, disse:
– Não se aflija tanto e
fique calmo, que eu não fugirei. Pode falar.
– Dizei-me, senhor
Bispo, estais salvo?
– Olhe-me e observe como
estou robusto, cheio de louçania e brilho.
O seu aspecto dava-me
realmente a certeza de que estava salvo; mas, não me contentando com essa
impressão, repliquei:
– Dizei-me se estais salvo:
Sim, ou não?
– Sim, estou num lugar
de salvação.
– Mas já estais no
Paraíso, gozando do Senhor? Ou estais ainda no Purgatório?
– Estou num lugar de
salvação, mas ainda não vi a Deus, pelo que necessito de que rezem por mim.
– E quanto tempo ainda
deverá estar no Purgatório?
– Olhe aqui e leia –
disse ele, apresentando-me uma folha de papel.
Tomei na mão o papel,
observei-o atentamente, mas nada vendo escrito, disse-lhe:
– Não vejo nada!
– Veja bem o que nele
está escrito, e leia.
– Já olhei com atenção e
estou a olhar novamente, mas nada posso ler, porque nada há escrito aqui.
– Veja com mais atenção!
– Vejo um papel com
floreados vermelhos, azuis, verdes, cor de violeta, mas não encontro letra
alguma.
– São algarismos –
respondeu o Bispo.
– Não vejo letras, nem
números – disse eu.
O Bispo olhou o papel
que eu tinha nas mãos e disse:
– Já sei porquê o senhor
não vê nada. Vire o papel ao contrário...
Examinei a folha com
maior atenção, virei-a de todos os lados; mas nem dum lado nem doutro, nada
consegui ler. Somente pareceu-me ver,
entre uma infinidade de traços e desenhos, o número 8.
– O senhor Dom Bosco
sabe por que é necessário ler ao contrário?
E continuou o Bispo:
– É porque os Juízos do
Senhor são completamente distintos dos juízos do mundo. O que os homens julgam
ser sabedoria, é tolice aos olhos de Deus.
Não tive coragem de
insistir para que explicasse mais claramente, e disse:
– Senhor Bispo, não vos
afasteis. Quero perguntar-vos mais coisas.
– Pois pergunte, que eu
escuto-o.
– Eu salvar-me-ei?
– Deve ter esperança
nisso.
– Não me façais sofrer.
Dizei-me já se me salvarei.
– Não sei.
– Pelo menos, dizei-me
se estou na Graça de Deus.
– Não sei.
– E os meus meninos,
salvar-se-ão?
– Não sei.
– Mas, por favor,
dizei-me. Estou implorando.
– O senhor estudou
Teologia, e, portanto pode saber, pode dar a resposta a si mesmo.
– Mas, como? Estais num
lugar de salvação e ignorais essas coisas?
– O Senhor dá-as a
conhecer a quem quer. E quando quer que elas sejam comunicadas, dá ordem e
permissão para tal.
A não ser assim, ninguém
pode comunicar com os que ainda vivem.
Eu estava nervoso, na
impaciência de fazer mais perguntas, e fazia-as apressadamente, com receio de
que o senhor Bispo se retirasse...
– Dizei-me algo, para
transmitir da vossa parte aos meus meninos.
– O senhor Dom Bosco
sabe, tanto quanto eu, o que eles devem fazer.
Tendes a Igreja, o
Evangelho e as demais Escrituras, que tudo vos dizem.
Diga-lhes, sim, que
salvem as suas almas, pois tudo o mais de nada serve.
– Já sabemos que devemos
salvar a alma. Mas que devemos fazer para salvá-la?
Dai-me alguma
recomendação especial de salvação, que nos faça lembrar de vós. Eu repeti-la-ei
aos meus rapazes, em vosso nome.
– Diga-lhes que sejam bons
e obedientes.
– Quem é que não sabe
essas coisas?
– Diga-lhes que sejam
puros e que rezem.
– Mas, por favor,
explicai-vos em termos mais detalhados.
– Diga-lhes que se
confessem com frequência e que façam boas confissões.
– Alguma outra coisa
ainda mais concreta?
– Pois direi já o que
pretende:
Diga-lhes que têm diante
dos olhos uma neblina, e que, quando alguém chega a vê-la, já está muito
adiantada.
Que eles afastem, pois,
essa neblina, como se lê nos Salmos: "Nubem
dissipa"...
– Que neblina é essa?
– São todas as coisas
mundanas que impedem de ver as coisas celestiais como de fato são.
– E o que devem fazer
para afastar essa neblina?
– Que considerem o mundo
exatamente como ele é – "Mundus
totus in maligno positus est [o mundo está todo posto no maligno]" –,
e então salvarão a alma.
Que eles não se deixem
enganar pelas aparências do mundo.
Os jovens creem que os
prazeres, as alegrias, as amizades do mundo, podem fazê-los felizes, e
portanto, não esperam senão o momento de poder gozar esses prazeres.
Mas recordem-se de que
tudo é vaidade e aflição de espírito, e tomem o hábito de ver as coisas do
mundo, não como elas parecem ser, mas como elas realmente são.
– E essa neblina, como é
especialmente produzida?
– Assim como a virtude
que mais brilha no Paraíso é a Pureza, assim a obscuridade e a neblina são
produzidas, principalmente, pelo pecado da imodéstia e impureza.
É como uma negra nuvem
densíssima que tolda a visão e impede os jovens de verem o precipício, rumo ao
qual caminham.
Diga-lhes, portanto, que
conservem zelosamente a virtude da Pureza, porque os que a possuem "florebunt sicut lilium in civitate Dei
[florescerão como o lírio na cidade de Deus]".
– E o que se requer para
conservar a Pureza? Dizei-me, e di-lo-ei aos meus caros jovens, da vossa parte.
– Recolhimento,
obediência, fuga do ócio e oração.
– E o que mais?
– Oração, fuga do ócio,
obediência e recolhimento.
– Nada mais?
– Obediência,
recolhimento, oração e fuga do ócio.
Recomende-lhes estas
coisas, que elas são suficientes.
Teria querido
perguntar-lhe muitas coisas mais; porém, não me vinham à lembrança.
Assim é que, mal o Bispo
terminou de falar, impaciente para vos transmitir aqueles avisos, deixei
apressadamente o salão e corri para o Oratório.
Voava com a rapidez do
vento, e num instante encontrei-me à porta de casa.
Mas ao chegar, parei e
pensei:
Por que não permaneci
mais tempo com o senhor Bispo?
Teria conseguido ainda
melhores esclarecimentos. Fiz mal em deixar escapar essa ocasião tão boa. Teria
aprendido muitas coisas interessantes...
Imediatamente, voltei
atrás com a mesma rapidez com que tinha vindo, receoso de não mais encontrar o
senhor Bispo.
Entrei novamente no
palácio e no salão...
* * *
Mas que mudanças se
haviam operado em poucos instantes!
O Bispo, pálido como
cera, estava agora estendido sobre um leito, e parecia um cadáver!
Nos seus olhos brilhavam
ainda as últimas lágrimas, pois estava em agonia!
Só pelo ligeiro
movimento do peito, produzido pelos últimos alentos, se deduzia que ainda
estava vivo.
Aproximei-me, com grande
preocupação, e perguntei-lhe:
– Senhor Bispo, o que
vos aconteceu?
– Deixe-me! – respondeu,
com um gemido.
– Teria ainda muitas
coisas para vos perguntar.
– Deixe-me só! Sofro
profundamente!
– Que posso fazer por
vós?
– Reze, e deixe-me ir
embora!
– Para onde?
– Para onde me conduz a
Mão omnipotente de Deus.
– Mas, senhor Bispo,
rogo-vos que me digais o local.
– Sofro imensamente,
deixe-me!
Eu repetia:
– Mas ao menos dizei-me:
O que posso fazer por vós?
– Reze por mim.
– Uma só pergunta:
Tendes algum encargo que eu possa fazer-vos no mundo? Não quereis dizer nada
para o vosso sucessor?
– Vá ao atual Bispo
de..., e diga-lhe, da minha parte, tal e tal coisa...
As coisas que me disse
não vos interessam queridos jovens, e por isso as omito...
E o Bispo acrescentou:
– Diga também a tais e
tais pessoas, tais e tais coisas secretas...
(Também sobre esses
recados, Dom Bosco calou-se. Mas tanto os primeiros como os segundos recados,
parece que se referem a avisos e remédios com respeito à sua antiga Diocese).
– Nada mais?
– Diga aos seus jovens
que eu sempre lhes quis muito bem, e que eu, enquanto vivi, sempre rezei por
eles, e ainda agora me recordo deles.
Que eles também rezem
por mim.
– Tende a certeza,
senhor Bispo, de que assim o direi. Começaremos imediatamente a oferecer
sufrágios por vossa Alma.
E quando o senhor Bispo
estiver no Paraíso, lembre-se de nós.
O Bispo tinha tomado um
aspecto ainda mais sofredor!
Era um tormento vê-lo, pois
sofria muitíssimo! Era uma agonia das mais angustiosas!
– Deixe-me! Deixe-me que
vá para onde o Senhor me chama! – respondeu ele.
– Senhor Bispo! Senhor
Bispo! – repetia eu, cheio de indizível compaixão.
– Deixe-me, deixe-me! –
insistia ele, dolorosamente.
Parecia que expirava!
E logo uma força
invisível arrastou-o dali para habitações mais interiores, e desse modo
desapareceu... Eu, assustado e comovido
com todo esse sofrimento, quis voltar atrás; mas, tendo batido com o joelho num
objeto qualquer daquela sala, acordei, e encontrei-me de repente deitado no meu
quarto... Como vedes caros jovens,
este foi um sonho semelhante aos demais. E no que se refere a
vós, não tendes necessidade de mais explicações, porque todos entendeste-las
bem.
E Dom Bosco concluiu a
narração, dizendo:
Neste sonho, aprendi
tantas coisas, a respeito da Alma e do Purgatório, como antes jamais havia
chegado a compreender; e vi-as tão claramente que jamais as esquecerei.
* * *
Assim termina a narração
dos nossos apontamentos.
Parece que, em dois
quadros distintos, o Venerável Dom Bosco quis expor o estado de graça das Almas
do Purgatório, e os seus sofrimentos expiatórios.
Nenhum comentário ele
fez acerca do estado daquele bom Bispo.
Sabe-se, aliás, por
revelações digníssimas de fé e pelo testemunho dos Santos Padres, que até
algumas almas de santidade consumada, lírios de virginal pureza, carregadas de
méritos, fazedores de milagres, almas que nós hoje veneramos nos altares,
também tiveram de permanecer algum tempo no Purgatório, por impurezas ou
defeitos ligeiríssimos (não devidamente expiados neste mundo).
A Justiça Divina quer
que, antes de entrar no Céu, cada um pague até à última parcela das suas
dívidas.
Nós, que escrevemos esta
visão, tendo perguntado a Dom Bosco, algum tempo depois, se havia executado os
encargos recebidos daquele Prelado, com a confiança com que ele nos honrava,
respondeu-nos:
"Sim, executei
fielmente o que ele me recomendou".
Observamos também que a
pessoa, que transcreveu o sonho, omitiu uma circunstância, que agora nós
recordamos, talvez porque então não entendia o seu sentido e importância:
Dom Bosco havia
perguntado, a certa altura, quanto tempo ele mesmo ainda viveria, e o Bispo
havia-lhe apresentado um papel cheio de rabiscos entrecruzados, parecidos com o
número 8, mas sem dar explicação alguma desse mistério...
Indicaria o ano de 1888,
ano em que Dom Bosco faleceu.
S. João Bosco começou
por chamar Oratório, ou Oratório Festivo, às reuniões que fazia para os jovens,
nos Domingos e Dias de Festa.
Nessas reuniões, rezava
com os rapazes, dava catequese, ministrava os Sacramentos e proporcionava sadia
recreação.
Com o passar do tempo, o
Oratório passou a designar, por extensão, o local de Turim onde o Santo
estabeleceu a sua obra.
-----
Na Itália, o tratamento
respeitoso de "Dom" (de 'dominus', isto é, senhor) é dado
habitualmente aos Sacerdotes seculares.
No Oratório, chamava-se
“Boa noite” à alocução, geralmente breve, que Dom Bosco costumava fazer, no fim
de cada dia.
Tal costume permanece
até hoje, nas Casas salesianas.
Da narrativa de S. João
Bosco, pode certamente depreender-se que, neste caso concreto (assim como no
doutros semelhantes), não se tratou de um sonho normal, mas de uma autêntica
visão sobrenatural.
Na sua profunda
humildade, o Santo terá tentado ocultar, com as frases que acabamos de ler, o
verdadeiro caráter místico dessas revelações recebidas.
[...]
Nenhum comentário:
Postar um comentário