A EVOCAÇAO


    Vimos que a evocação ou a manifestação provocada das almas dos falecidos, que são os "espíritos" do espiritismo, especifica, caracteriza e define o movimento suscitado por Allan Kardec. Sem evocação não há espiritismo. A evocação é a base da doutrina exposta em O livro dos espíritos, como se afirma no próprio subtítulo: "Segundo os ensinos dados por espíritos superiores com o concurso de diversos médiuns"; e como se explica amplamente na introdução. 
   Em 1861 AK publicou sua segunda obra considerada fundamental: O livro dos médiuns, com este significativo subtítulo: "Guia dos médiuns e dos evocadores". Todo o capítulo X!XV é dedicado à evocação. Sua exposição neste capítulo inicia com esta afirmação: "Os espíritos podem comunicar-se espontaneamente, ou acudir ao nosso chamado, isto é, vir por evocação".
    Nestas palavras já temos uma espécie de definição do termo "evocação": "Acudir ao nosso chamado". Lembra em seguida AK que algumas pessoas acham que se deve deixar de chamar por de terminado espírito, pois nenhuma certeza poderíamos ter de entrarmos realmente em comunicação com o espírito desejado, já que estamos rodeados de espíritos brincalhões e galhofeiros que se aproveitariam da oportunidade para nos enganar; por isso, dizem, seria melhor fazer uma evocação muito genérica e esperar que de terminado espírito se apresente então espontaneamente. AK não nega este tipo de manifestações "espontâneas" (que, no entanto, sempre seria provocado ou produzido mediante o médium), mas não concorda com o parecer que acabara de expor: "Primeiramente, porque há sempre em tomo de nós espíritos, as mais das vezes de condição inferior, que outra coisa não querem senão comunicar-se; em
segundo lugar, e mesmo por esta última razão, não chamar a nenhum em particular é abrir a porta a todos os que queiram entrar. Numa assembléia, não dar a palavra a ninguém é deixá-la livre a toda a gente e sabe-se o que daí resulta. A chamada direta de determinado espírito constitui um laço entre nós e ele; chamamo-lo pelo nosso desejo e opomos assim uma espécie de barreira aos intrusos. Sem uma chamada direta, um espírito nenhum motivo terá muitas vezes para confabular conosco". Aí está bem claramente definido o pensamento de Kardec e o propósito espírita: chamar ou evocar diretamente bem determinado falecido para confabular conosco. AK insiste: "Quando se deseja comunicar com determinado espírito, é de toda necessidade evocá-lo". Esta é base do espiritismo. Sobre este fundamento será agora necessário fazer algumas ponderações.

1. SERÁ POSSÍVEL COMUNICAR-SE COM OS FALECIDOS?
    Nós cristãos católicos admitimos e proclamamos a imortalidade da alma. Cremos na sua sobrevivência consciente logo depois da separação do corpo pela morte. Acreditamos que as almas dos falecidos continuam solidárias com os que ainda vivemos nesta peregrinação terrestre. Professamos nossa fé na comunhão dos santos. Podemos comunicar-nos com os falecidos mediante a oração invocativa. Veremos esta doutrina cristã nas páginas 178-179.
    Não seria possível, então, que os falecidos também se comunicassem conosco? A doutrina cristã sobre a comunhão dos santos se refere à comunicação mútua de bens espirituais, no plano inteiramente Imperceptível da fé. É certo que a Bíblia menciona várias vezes aparições perceptíveis de espíritos do além.    Assim o evangelista Lucas nos relata que "o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão chamado José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria. 
    Entrando na casa onde ela estava, disse-lhe: Alegra-te, cheia de graça, o Senhor é contigo" (Lc 1,26-28).     Jesus ressuscitado apareceu. a Saulo a caminho de Damasco e falou com ele (cf. At 9). 
    A Igreja aprovou aparições de Nossa Senhora em Lourdes e em Fátima.
  Trata-se, nestes casos, evidentemente, de comunicações perceptíveis vindas do além. A fé cristã, por conseguinte, admite não somente a mera possibilidade de comunicações sensíveis, mas afirma fatos reais deste tipo de trato entre o além e o aquém.
   Não devemos, porém, esquecer que Lucas nos informa que o Anjo "foi enviado por Deus".
   Quem negará a Deus todo-poderoso a capacidade de enviar-nos seus mensageiros?
   Quando Deus manda, a iniciativa é sua; e a conseqüente manifestação do além toma para
nós um caráter espontâneo.
  Bem outra é a situação quando a iniciativa é nossa, querendo nós provocar alguma conversação com entidade do além. Quem pretende provocar a manifestação de algum falecido para dele receber mensagem ou notícia pratica um ato chamado pelos antigos de necromancia, expressão que vem do grego nekrós = falecido e mantéia = adivinhação. E quem intenta comunicar-se com o além com o fim de colocá-lo a serviço do homem realiza um ato já conhecido pelos antigos como magia. Quando a esperada ação da evocada entidade do além é a favor do homem ou para o bem, chama-se magia branca, mas será sempre "magia". E se for para o mal, será magia negra ou malefício, feitiçaria, bruxaria.
Tais comunicações provocadas do além, seja na forma de necromancia, seja na de magia (branca ou negra, pouco importa), são conhecidas também como evocação. Há diferença fundamental entre invocação e evocação: esta sempre pretende uma comunicação perceptível provocada por iniciativa do homem; aquela é apenas uma forma de prece ou súplica.
  É evidente que a invocação é um ato bom e cristão, expressão da comunhão dos santos.

Mas que dizer da evocação?
Para esta pergunta recebemos da revelação divina resposta clara e insistente:
  • Êxodo 22,17: "Não deixarás viver os feiticeiros". Aqui, a palavra "feiticeiros" engloba todos aqueles que praticam qualquer tipo de evocação: necromantes e magos, sem excluir os que se entregam à magia branca. Deviam ser condenados à morte. 
  • Levítico 19,31: "Não vos voltareis para os necromantes nem consultareis os adivinhos, pois eles vos contaminariam. Eu sou Iahweh, vosso Deus". 
  • Levítico 20,6: "Aquele que recorrer aos necromantes e aos adivinhos para ter comunicação com eles, voltar-me-ei contra esse homem e o exterminarei do meio de seu povo". Portanto são condenados também aqueles que simplesmente consultam os necromantes. 
  • Levítico 20,27: "O homem ou a mulher que entre vós forem necromantes ou adivinhos serão mortos; serão apedrejados, e o seu sangue cairá sobre eles". 
  • Deuteronômio 18,10-14: "Que em teu meio não se encontre alguém que faça presságio, oráculos, adivinhação ou magia, ou que pratique encantamentos, que interrogue espíritos ou adivinhos, ou evoque os mortos, pois quem pratica essas coisas é abominável a Iahweh, e é por  causa dessas abominações que Iahweh teu Deus os desalojará em teu favor. Tu serás íntegro para com Iahweh teu Deus. Eis que as nações que vais conquistar ouvem oráculos e adivinhos. 
  • Quanto a ti, isso não te é permitido por Iahweh teu Deus".
  • 2 Reis 17,17, enumerando as infidelidades de Israel, pelos quais foi castigado: "...
  • Praticaram a adivinhação e a feitiçaria e venderam-se para fazer o mal na presença de Iahweh, provocando sua ira. Então Iahweh irritou-se sobremaneira contra Israel e arrojou-o para longe de sua face. . . "
  • 2 Reis 21,6: descrição dos crimes do rei Manassés: "Praticou encantamentos e a adivinhação, estabeleceu necromantes e adivinhos e multiplicou as ações que Iahweh considera más, provocando assim a sua ira".
  • Isaías 8,19-20: o profeta se levanta contra aqueles que dizem: "Consultai os necromantes e os adivinhos que sussurram e murmuram".

  Destaque especial merece a consulta do rei Saul à necromante de Endor, narrada em lSm 28,3-25. Estando em dificuldades na guerra contra os filisteus, e sem saber o que fazer, o rei Saul disse aos seus servos: "Buscai-me uma necromante para que eu lhe fale e a consulte".
Informaram-lhe os servos que havia uma na localidade de Endor, ao sul do monte Tabor. Saul então disfarçou-se e, de noite, acompanhado de dois homens, foi à casa da necromante (os espíritas diriam "médium") e lhe pediu para evocar o falecido Samuel. Segundo o texto, Samuel de fato compareceu e disse a Saul: "Por que perturbas o meu repouso, evocando-me?" Saul respondeu: "É que estou em grandes angústias. Os filisteus guerreiam contra mim, Deus se afastou de mim, não me responde mais. Então vim te chamar para q'1e me digas o que tenho que fazer". Respondeu Samuel: "Por que me consultas, se Iahweh se afastou de ti e se tomou teu adversário?" E lhe anunciou os castigos de Deus.
Em Eclesiástico 46,20 lemos a respeito deste caso de evocação:
"Mesmo depois de morrer, (Samuel) profetizou, anunciou ao rei (Saul) seu fim, do seio da terra elevou sua voz para profetizar, para apagar a iniqüidade do povo". Segundo os textos citados, parece que se deve admitir que o falecido Samuel, evocado pela necromante de Endor, realmente compareceu. Todo o contexto, todavia, deixa evidente que se trata de caso excepcional, sendo a evocação não a causa, mas a ocasião aproveitada por Deus para autorizar o comparecimento do falecido profeta e anunciar os castigos ao rei desobediente e infiel. Deste episódio singular não se pode inferir que nos outros casos os necromantes e magos conseguissem de fato fazer comparecer os falecidos evocados.
Aliás, em 1 Crônicas 10,13-14, somos assim informados acerca do fim do rei: "Saul pereceu por se ter mostrado infiel para com Iahweh, não seguira a palavra de Iahweh e, além disso, interrogara e consultara uma necromante. Não consultou a Iahweh, que o fez perecer e transferiu a realeza a Davi, filho de Jessé".
  Clara, repetida, enérgica e severíssima é, pois, a proibição divina de evocar os falecidos. E este mandamento divino não foi revogado na Nova Aliança. Eis alguns exemplos: Em Atos 13,6-12, Paulo e Barnabé encontram em Patos um judeu "mago e falso profeta", que se opunha à missão apostólica dos dois. Paulo, repleto do Espírito Santo, lhe disse: "O filho do diabo, cheio de toda a falsidade e malícia, inimigo de toda justiça, não cessas de perverter os retos caminhos do Senhor? Eis que agora o Senhor faz pesar sobre ti a sua mão".
  Em Atos 16,16-18, Paulo, estando em Filipos, dá com uma jovem escrava "que tinha um espírito de adivinhação e obtinha para seus amos muito lucro, por meio de oráculos". Paulo disse ao espírito que estava na jovem: "Eu te ordeno em nome de Jesus Cristo: sai desta mulher!" E o espírito saiu no mesmo instante.
  Em Atos 19,11-20 descreve-se a atividade e a pregação de Paulo em Éfeso, com este resultado: "Muitos daqueles que haviam crido vinham-se confessar e revelar suas práticas.
Grande número dos que se haviam dado à magia amontoavam os seus livros e os queimavam em presença de todos. E estimaram o valor deles em cinqüenta mil peças de prata".
  Deviam ser muitos os livros de magia! O fato de eles queimarem estes livros só se explica se admitirmos que o Apóstolo falou fortemente contra as práticas da magia. Na carta aos gálatas (5,20-21) declara o mesmo Apóstolo que os que praticam a magia "não herdarão o Reino de Deus". E são João, no Apocalipse, revela que a porção dos magos se encontra no lago ardente de fogo e enxofre (21,8); e que, na hora do julgamento, os magos ficarão de fora da Cidade Eterna (22,15).
  Posteriormente, a Igreja sempre se manteve fiel a esta rigorosa interdição divina de evocar os falecidos. No último Concílio, o Vaticano II, em 1964, a Constituição Lumen Gentium, temendo que a doutrina sobre nossa comunicação espiritual com os falecidos pudesse dar azo a interpretações do tipo espiritista, acrescentou ao texto do n. 49 a nota n. 2, "contra qualquer forma de evocação dos espíritos", coisa que, esclareceu a Comissão teológica responsável pela redação do texto, nada tem a ver com a "sobrenatural comunhão dos santos". A Comissão definiu então mais claramente o que se proibia: "A evocação pela qual se pretende provocar, por meios humanos, uma comunicação perceptível com os espíritos ou as almas separadas, com o fim de obter mensagens ou outros tipos de auxílio". O Concílio Vaticano II nos remete então a vários documentos anteriores da Santa Sé (já no dia 27-9-1258 o papa Alexandre IV falara
disso), principalmente à declaração de 4-8-1856 e à resposta de 24-4-1917. Na declaração de 4-
8-1856, precisamente quando AK se iniciava no espiritismo, era repetida a proibição de "evocar as almas dos mortos e pretender receber suas respostas". No documento de 24-4-1917 se declarava ilícito "assistir a sessões ou manifestações espiritistas, sejam elas realizadas ou não com o auxílio de um médium, com ou sem hipnotismo, sejam quais forem estas sessões ou manifestações, mesmo que aparentemente simulem honestidade ou piedade; quer interrogando almas ou espíritos, ou ouvindo-lhes as respostas, quer assistindo a elas com o pretexto tácito ou expresso de não querer ter qualquer relação com espíritos malignos".
   No dia 31-3-1892 a Santa Sé publicou sua resposta oficial a um caso imaginado de evocação no qual as circunstâncias descritas eram as mais favoráveis. Eis a exposição do caso, a pergunta e a resposta:
"Tito, depois de excluir qualquer comunicação com o mau espírito, tem o costume de evocar as almas dos defuntos. Costuma proceder da seguinte maneira: Quando está só, sem outra preparação, dirige uma prece ao príncipe da milícia celeste a fim de obter dele o poder de comunicar-se com o espírito de determinada pessoa. Espera algum tempo; depois, enquanto conserva a mão pronta para escrever, sente um impulso que lhe dá a certeza da presença do espírito. Expõe então as coisas que deseja saber e sua mão escreve as respostas a estas questões. 
Tais respostas concordam inteiramente com a fé católica e a doutrina da Igreja acerca da vida futura. Geralmente elas falam sobre o estado em que se encontra a alma do tal falecido, pedem sufrágios etc. É lícito proceder desta maneira?" - A resposta oficial, aprovada pelo papa Leão XIII, foi categórica: "O que foi exposto não é permitido".

2. REJEIÇÃO CRISTÃ DA REVELAÇÃO MEDIANTE FALECIDOS
   Por que tão rigorosa interdição? Não poderíamos ser positivamente ajudados pela instrução dos falecidos? Ou quererá Deus deixar-nos na ignorância acerca dos acontecimentos depois da morte?
   O próprio Jesus nos deu a resposta na parábola do pobre Lázaro e do rico epulão (cf. Lc 16,19-31). Ambos morrem e são julgados, cada um de acordo com a vida que levou nesta terra.  Lázaro "foi levado pelos anjos ao seio de Abraão", isto é, ao céu. O rico avarento é condenado ao inferno. A diferença entre os dois, depois da morte, é grande. O falecido rico gozador implora: "Pai Abraão, tem piedade de mim e manda que Lázaro molhe a ponta do dedo para me refrescar a língua, pois estou torturado nesta chama". Mas a separação entre ambos é definitiva e a comunicação, impossível. A resposta do céu é clara e dura:
- "Entre vós e nós existe um grande abismo, de modo que aqueles que quiserem passar daqui para junto de vós não o podem, nem tampouco atravessarem os de lá até nós" (v. 26). 
O falecido epulão insiste num pedido com filantrópica proposta: "Pai, eu te suplico, envia então Lázaro até a casa de meu pai, pois tenho cinco irmãos; que ele os advirta, para que não venham eles também para este lugar de tormento". Era uma sugestão que parecia muito boa.
    Estabelecer-se-ia um útil intercâmbio entre os do além, com seus novos conhecimentos, e os da terra, sempre necessitados de esclarecimento e orientação. No entanto, a resposta do céu é seca:
- "Eles têm Moisés e os Profetas; que os ouçam!" (v. 29).
   Mas o proponente insiste, com uma justificação: "Não, pai Abraão, se alguém dentre os mortos for procurá-los, eles se converterão". A razão parecia óbvia. É a solução proposta também pelos atuais movimentos espiritistas. Se é verdade que as almas dos falecidos sobrevivem conscientemente e que elas continuam solidárias conosco, afirmações que são corroboradas pela Bíblia e ensinadas pela Igreja católica, por que não poderia o Criador escolher esta via para trazer revelações úteis do além? A resposta do céu, entretanto, segundo Jesus, é sem rodeios:
- "Se não escutam nem a Moisés nem aos Profetas, mesmo que alguém ressuscite dos mortos, não se convencerão" (v. 31). 
    É a rejeição pura e simples da via espiritista.
   Deus certamente "quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade" (1 Tm 2,4). Ele não quer deixar-nos na ignorância. Mas o Criador dos homens escolheu outra Via para instruí-los sobre o sentido da vida e o destino eterno. Na Constituição dogmática Dei Verbum, de 1965, o Concílio Vaticano II resume no n. 2 assim o plano divino da revelação:
- "Aprouve a Deus, em sua bondade e sabedoria, revelar-se a si mesmo e tomar conhecido o mistério de sua vontade (cf. Ef 1,9), pelo qual os homens, por intermédio de Cristo, Verbo feito carne, e, no Espírito Santo, têm acesso ao Pai e se tomam participantes da natureza divina. 
Mediante esta revelação, portanto, o Deus invisível, levado por seu grande amor, fala aos homens como a amigos (cf. Ex 33,11; Jo 15,14-15), e com eles se entretém para os convidar à comunhão consigo e nela os receber. Este plano de revelação se concretiza através de acontecimentos e palavras intimamente conexos entre si, de forma que as obras realizadas por Deus na história da salvação manifestam e corroboram os ensinamentos e as realidades significadas pelas palavras. Estas, por sua vez, proclamam as obras e elucidam o mistério nelas contido. No entanto, o conteúdo profundo da verdade, seja a respeito de Deus, seja da salvação do homem, se nos manifesta por meio dessa revelação em Cristo, que é ao mesmo tempo mediador e plenitude de toda a revelação".
   Deste plano de revelação estão excluídos os falecidos. Depois de Moisés e dos Profetas, Deus nos enviou seu Filho, o Verbo eterno que ilumina todos os homens, para que habitasse entre os homens e lhes expusesse os segredos de Deus (cf. Jo 1,1-18). Com Jesus recebemos a  plenitude da revelação necessária para a nossa salvação. Ele se apresenta a si mesmo com uma declaração solene: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" (10 14,6). Ele está "cheio de verdade" (10 1,14). "Nele se acham escondidos todos os tesouros da sabedoria e do  conhecimento" (Cl 2,3). Ele é pessoalmente o anunciado e prometido Emanuel, Deus-com-os homens.
  Ele é para nós como a nuvem luminosa do Êxodo: "Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida" (10 8,12). Ele é a luz das gentes (Lc 2,32), o sol nascente que ilumina os que estão nas trevas (Lc 1,78s.). "Eu, a luz, vim ao mundo para que aquele que crê em mim não permaneça nas trevas" (10 12,46). 
  Não necessitamos perturbar o repouso dos falecidos (cf. 1 Sm 28,15). O Concílio Vaticano II, na citada Constituição Dei Verbum (n. 4b), nos garante que "a economia cristã, como aliança nova e definitiva, jamais passará, e já não há que esperar nenhuma nova revelação pública antes da gloriosa manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo (d. lTm 6,14; Tt 2,13)".
Não haverá "terceira revelação".
  O espiritismo, que pretende ser precisamente esta "terceira revelação", não só não entra nos planos de Deus Revelador, mas se opõe à economia divina.

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Fonte:
Espiritismo-orientação aos Católicos
D. Boaventura Kloppenburg, OFM


O ESPIRITISMO DE UMBANDA


   No fim de sua vida, AK, como lemos em suas Obras póstumas, via com profunda inquietação o problema da unidade do espiritismo. Seu último manuscrito, sobre a "Constituição do espiritismo", toca também a questão dos cismas. Para garantir a unidade, proclamava como condição fundamental "que todas as partes do conjunto da doutrina sejam determinadas com precisão e clareza". Exatamente quando se dispunha a formular os "princípios fundamentais da doutrina espírita, reconhecidos como verdades inconcussas", foi chamado pelo Senhor da vida.
   Na Constituição falava também da "necessidade de uma direção central superior, guarda vigilante da unidade progressiva e dos interesses gerais da doutrina"; e fazia sentir sua inquietação por não ver, "a surgir no horizonte, o seu condutor". Sem isso, escrevia ele, o espiritismo corre o risco de "caminhar ao léu". Quis mesmo estabelecer um "formulário de fé e adesão, por escrito", para garantir "a unidade "sob o império de uma mesma fé, de uma comunhão de pensamentos, de modos de ver e de aspirações". Dir-se-ia que desejava um papa... Mas tudo isso não se concretizou. E o espiritismo iniciou sua marcha ao léu... "Todos
queriam a união dos espíritas em tomo de um centro diretor. Todos, porém, queriam ser esse centro."
   No Brasil, a reação mais violenta e extrema dentro do espiritismo kardecista surgiu em 1910, com o Sr. Luiz de Mattos, fundador do "Espiritismo Racional e Científico (Cristão)". Naquele ano, o padre Antônio Vieira, "em corpo astral", o escolheu para iniciar o novo movimento. Contra o aspecto excessivamente religioso dos kardecistas, acentuou o lado científico e racional das comunicações com o "mundo astral". Em suas obras investe furiosamente contra o kardecismo, "a maior praga que na terra existe, porque, além dos perversos instintos que os dominam, são dominados pela indolência mental, não gravam senão aquilo que
agrada a sua animalidade"; "um saco de patifarias enfeitado com as rendas sem caridade não há salvação e outras frioleiras". Com relação à Igreja, estes espiritistas racionalistas são igualmente agressi vos. Eles se orgulham de ter uma filosofia própria e de poder explicar com exatidão o que é o espírito, a matéria, o astral, o fluido, o pensamento, o espaço, a aura e a evolução. E todos quantos não aceitam estas explicações, são cretinos e obsedados. Menos violenta, mas mais profunda e incomparavelmente mais popular, foi outra cisão, da qual surgiu o assim chamado espiritismo "de umbanda". Informa o Conselho Nacional Deliberativo da Umbanda (CONDU) que no dia 15 de novembro de 1907 o Sr. Zélio
Fernandino de Moraes, de tradicional fanu1ia fluminense, compareceu a uma sessão da Federação Espírita de Niterói e lá "recebeu um aviso" do além: seria o responsável pela organização de um novo culto no Brasil.
No dia seguinte foi fundado o primeiro terreiro de umbanda: a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade. Dez anos depois Zélio de Moraes criou mais sete tendas espíritas, todas de "Nossa Senhora". Em 1937 organizou a Federação Espírita de Umbanda do Brasil, posteriormente denominada União Espiritista da Umbanda do Brasil (UEUB), que, em 1941, promoveu o I Congresso do Espiritismo de Umbanda, para ensaiar a codificação formal da doutrina e do ritual.

Que acontecera?
2. As pesquisas feitas por Diana Brown ("Uma história da umbanda no Rio", em Cadernos de ISER, n. 18, 1985) revelam que Zélio de Moraes e seu grupo eram kardecistas insatisfeitos com o elitismo da prática espírita, que começaram a visitar terreiros de cultos africanos localizados nos bairros populares dos arredores do Rio de Janeiro e de Niterói. Todos eles eram brancos e da classe média: funcionários públicos, comerciantes, militares, profissionais liberais.
   Deu-se então o encontro do kardecismo francês com a religião africana de origem banta, caracterizada pelo culto aos antepassados ou ancestrais, que também eram evocados à maneira espiritista e se manifestavam durante o ritual africano. Era evidente a afinidade entre espiritismo e culto banto. Ritual e doutrinariamente pobre, a prática banta ("macumba") já se havia enriquecido com elementos do culto nagô ("candomblé"), sobretudo pela adoção de orixás iorubanos (também ancestrais, embora de certa categoria e após um processo de ancestralização), mas sem deixar de estar sempre centrado na evocação de seus
próprios antepassados, que já então se manifestavam ora como "pretos velhos", ora como "caboclos" ou "crianças". Na época já se realizara também o sincretismo do culto africano (sudanês e banto) com a religiosidade popular católica.
   Os kardecistas insatisfeitos, congregados por Zélio de Moraes, passaram a preferir as entidades que se manifestavam nos cultos bantos como mais competentes nas curas e no tratamento de doenças e na solução de outros problemas humanos. Os ritos africanos lhes pareciam mais estimulantes e dramáticos que o seco e monôtono cerimonial kardecista (espiritismo "de mesa"). Mas não aceitavam ritos que envolviam sacrifícios de animais e a presença de espíritos trevosos ("exus"). Nem concordavam com as bebedeiras e a exploração econômica dos clientes. A dispendiosa roupagem sacral feminina (das "baianas") foi substituída
por um higiênico avental branco, incentivando-se também o uso do tênis, em vez de dançar descalço. Simplificou-se o culto, a defumação e os cumprimentos do altar. 
   Houve, pois, um processo de desafricanização do rito banto-nagô. Fiéis ao corpo doutrinário do kardecismo, Zélio de Moraes e seus adeptos adotaram ritos de sabor africano e começaram a confabular com pretos velhos e caboclos do além.

Surgiu assim o espiritismo de umbanda.
3. "Umbanda" era o nome dado ao chefe do culto banto. O termo ainda hoje é comum em Angola, como me informaram vários missionários que lá trabalharam. O folclorista angolano Oscar Ribas, na obra Ilundo, publicada pelo Museu de Angola em 1958, confirma que o dirigente do terreiro, palavra que lá também é usada para indicar o lugar de culto, quando é homem, chama-se pai-de-umbanda, quando é mulher, mãe-de-umbanda. No dicionário dos dialetos Ouimbunda e Umbunda, de A. da Silva Maia, edição de 1955, a palavra "umbanda" significa simplesmente: ''feitiçaria, feitiço, feiticeiro". De um missionário angolano recebi
acerca desta palavra os seguintes dados: "Umbanda" é um vocábulo da língua umbunda, falada pela tribo do mesmo nome, da raça banta, na região central de Angola (Bailundo, Huambo, Bié, Andulo, Caconda etc.).        O mesmo termo, mais ou menos alterado, encontra-se também em outras tribos afins, como Nhaneca, ao sul de Angola. A palavra pode ter três significados: a) um talismã com a prolação das devidas palavras rituais, a que se atribuem efeitos maravilhosos, causados por espíritos ou almas dos falecidos; b) o próprio talismã, que pode ser um manipanço, raízes de plantas especiais, partes do corpo animal, como o fígado da hiena, unhas, cornos, ossos humanos sobretudo o crânio, moedas etc. As palavras rituais variam segundo o efeito a obter e que podem ter ou finalidade defensiva, contra o feitiço de outros, evitar uma calamidade
etc., ou finalidade ofensiva para provocar doença ou morte de um inimigo, ou com fins benéficos para conseguir riquezas, sorte nos negócios, nas relações, na caça, na agricultura; podem também relacionar-se com os ancestrais falecidos, para apaziguá-los, merecer sua proteção etc.; c) o poder de exercer os atos supramencionados. Arthur Ramos, em O negro brasileiro (3ª ed., p. 102, nota 150), cita esta informação de
Heli Chatelain, Folks-tales of Angola, de 1894: "U-mbanda é derivada de Ki-mbanda, pelo prefixo U., como u-ngana o é de ngana. Umbanda é: 1) a faculdade, ciência, arte, ofício, negócio: a) de cura por meios de medicina natural (remédios) ou medicinas supematurais (encantos); b) de adivinhação do desconhecido pela consulta aos espíritos dos mortos, aos gênios, demônios, que não são espíritos humanos nem divinos; c) de indução destes espíritos humanos e não-humanos a influir sobre os homens e a natureza para o bem-estar ou a desgraça humana; 2) as forças atuantes na saúde, na adivinhação e na influência dos espíritos; 3) os
objetos (encantos) que são supostos a estabelecer e determinar a conexão entre os espíritos e o
mundo físico".
   No já citado livro Ilundo, o folclorista angolano Oscar Ribas ensina: "Na religião negra nada se opera sem a influência dos espíritos. Através dos seus instrumentos de mediunidade, eles agem para todas as circunstâncias, quer para o bem, quer para o mal. São os espíritos que revelam as causas das enfermidades, azares, tudo, enfim, o que se pretende saber. São os espíritos que receitam por intermédio de seus sacerdotes, quer no momento da atuação, quer em sonho também. E são os espíritos, ainda, que tomam à sua guarda quem a eles recorre, ou, inversamente, também são eles que matam, quando a isso os induzem".
4. Mas não eram os umbandas de Angola que entusiasmaram o grupo fundador da umbanda no Brasil. Por ocasião do I Congresso do Espiritismo de Umbanda, em 1941, o grupo, então ainda numericamente insignificante, tinha a preocupação de mostrar que a umbanda é de origem antiquíssima, vem dos hindus, contemporânea dos Vedas, que depois passou à África, donde veio para o Brasil. Era este o teor das duas primeiras conclusões unanimemente aceitas por aquele congresso:
"I. O espiritismo de umbanda é uma das maiores correntes do pensamento humano existente na terra há mais de cem séculos, cuja raiz provém das antigas religiões e filosofias da Índia, fonte de inspiração de todas as demais doutrinas filosóficas do Ocidente".
"2. Umbanda é palavra sânscrita, cuja significação em nosso Idioma pode ser dada por qualquer dos seguintes conceitos: Princípio Divino, Luz Irradiante, Fonte Permanente de Vida, Evolução Constante."

Era a desafricanização.
   Os primeiros anos da incipiente umbanda não foram fáceis. Uma lei de 1934 (Getúlio Vargas) colocou os grupos religiosos de inspiração africana sob a jurisdição do Departamento de Tóxicos e Mistificações da polícia. Para poderem funcionar, tinham que solicitar registro especial neste Departamento. Naqueles anos houve repressão e perseguição policial. Numerosos grupos ficavam na clandestinidade ou, quando se registravam, procuravam esconder suas ligações ou inspirações africanas e se registravam como espiritistas".
5. A alta direção da Federação Espírita Brasileira, ortodoxamente kardecista, embora  hostil ao novo tipo de espiritismo, em nota publicada no Reformador, seu órgão oficial, de julho de 1953, fez esta declaração: "Todo aquele que crê nas manifestações dos espíritos é espírita; ora, o umbandista nelas crê, logo o umbandista é espírita”. E esclarecia: "Os que aceitam o fenômeno espírita como manifestação de 'Satanás', ou como ocasionado somente por forças desconhecidas, esses não são espíritas; mas aqueles que o têm como produzido por espíritos, esses devem ser considerados como adeptos do espiritismo, isto é, espiritistas, admitam ou não a reencarnação e pratiquem ou não rituais que nós não adotamos".

Era o endosso oficial.
Mas tão generosa e tolerante atitude da mais alta autoridade espírita no Brasil, que permitia às tendas umbandistas registrar-se oficialmente como "espíritas" para escaparem da perseguição policial, foi drasticamente modificada pela declaração oficial de 2 de janeiro de 1978, publicada no Reformador de fevereiro de 1978:
"1. É imprópria, ilegítima e abusiva a designação de espíritas adotada por pessoas, tendas, núcleos, terreiros, centros, grupos, associações e outras entidades que, mesmo quando legalmente autorizados a usar o título, não praticam a doutrina espírita, tal como foi clara e formalmente definida no editorial de Reformador de setembro de 1977, ano 95, n. 1.782". Este editorial definia: "Doutrina espírita é o conjunto de princípios básicos, codificados por Allan Kardec, que constituem o espiritismo. Estes princípios estão contidos nas obras fundamentais, que são: O livro dos espíritos, O livro dos médiuns, O evangelho segundo o espiritismo, O céu e o inferno, A gênese. Todas as demais obras, por mais preciosas que sejam ou venham a ser, são e serão obras complementares, sem que isso diminua o extraordinário valor de muitas delas".
"2. O espiritismo é uma doutrina de princípios estabelecidos com clareza e exatidão (...) e não se confunde com quaisquer outras ciências, filosofias, religiões, movimentos, sincretismos, folclore, crenças ou crendices."
"3. Não são espíritas, mesmo que assim se digam, nem médiuns espíritas, mesmo que sejam médiuns, os que não se enquadram nas definições doutrinárias contidas no Editorial de Reformador de novembro de 1977, ano 95, n. 1.784."

Era a excomunhão.
Aliás, já em 1926 o Conselho Federativo da mesma Federação kardecista publicara um parecer oficial sobre "caboclos e africanos". Já então se manifestavam "caboclos" e "pretos velhos" que não se pautavam pela doutrina AK (cf. Reformador, maio de 1978, p. 165), embora também viessem "do além". O além imaginado pelos espiritistas é tão pluralista como este aquém dos mortais.
6. Depois da guerra mundial e dos 15 anos da ditadura de Getúlio Vargas (1945), há o retomo a um governo constitucional. Diminui a perseguição policial. A umbanda pode ser praticada livremente. Criam-se novos centros. Formam-se novas federações. E a umbanda começa a aparecer nos meios de comunicação social, em programas de rádio, em colunas semanais dos principais jornais do Rio e em numerosas publicações de sua própria iniciativa. Em 1949 inicia a circulação do Jornal de umbanda, ainda por iniciativa do grupo Zélio de Moraes. O movimento passa a outros Estados. O pequeno grupo local se transforma em
movimento nacional. Começa a ser proclamado como "a religião do Brasil".
Sobretudo a partir de 1950 muitos terreiros afro-brasileiros, completamente independentes da umbanda pura idealizada por Zélio de Moraes, identificam-se publicamente também com a umbanda. Aparecem e pululam "terreiros de umbanda" de todo tipo. Cada qual dirige seu terreiro ou escreve seu livro inteiramente por conta própria, persuadido de ter assistência especial de alguns "guias" do além. Eis alguns desabafos da época: 
- "Os autores de umbanda se contradizem a si próprios e não apenas a seus colegas" (Samuel Ponze, Lições de umbanda, Rio, 1954, p. 35). E mais: "Reina a anarquia, a incompreensão, a vaidade, a mistificação, a pouca cultura entre a maioria dos umbandistas" (p.26); "cada qual quer ser o maior. Cada chefete de terreiro acha que acima de seu guia ou de seus guias, só Deus" (p. 27).
- "Cada um procura fazer uma umbanda a seu modo, e dentro do conceito que ele próprio imagina, de acordo com a sua instrução, com a sua capacidade de imaginação, com os seus conhecimentos, e, quase nunca, com a orientação dada pelos seus próprios guias" (A. Fontenelle, Exu, Rio, 1952, p. 60).
- "Até hoje, nada de claro ao público, em matéria literária sobre umbanda" (Emanuel Zespo, pseudônimo de Paulo Menezes, Codificação da lei de umbanda, Parte Científica, Rio, 1951, p. 16).
- "A umbanda, no Brasil, difere de Estado para Estado, de cidade para cidade, de município para município, de vila para vila e de tenda para tenda" (Lourenço Braga, Um banda e quimbanda, 2ª parte, Rio, 1956, p. 7). Depois explica: "Essa divergência tem sua origem na ignorância, na pretensão, na vaidade e, muitas vezes, na falta de escrúpulos e nas segundas intenções, de alguns de seus praticantes e dirigentes, que para serem adorados pelos que os cercam ou para tirarem quaisquer espécies de vantagens, mesclam e maculam a umbanda, com rituais desnecessários, usados para impressionar os crentes e freqüentadores".
- "Hoje uma vasta onda de mistificação invadiu a umbanda. Criaram, os intrusos, uma umbanda branca, uma umbanda mista, modificaram o ritual sagrado, e pior sob o ponto de vista espiritual, introduziram o comercialismo na seita. Escritores improvisados publicaram livros cheios de erros e fantasias, servindo a umbanda de capa a atividades inteiramente comerciais. 
Para completar a mistificação, pessoas que nada conhecem dos mistérios de umbanda, que nunca foram sacerdotes, que nunca fizeram 'cabeça', abriram centros e tendas, montaram consultórios luxuosos, onde os clientes são atendidos mediante fichas numeradas" (Byron Torres de Freitas e Tancredo da Silva Pinto, Fundamentos de umbanda, Rio, 1956, p. 19). 
7. Para remediar situação tão confusa, multiplicaram-se as federações e confederações. Em meados de 1950 surgiram seis novas federações no Rio, além da já existente UEUB: três foram organizadas por umbandistas do setor médio, seguindo as diretrizes gerais da orientação ritual e doutrinária da umbanda pura (idealizada pelo grupo de Zélio de Moraes). As outras três defendiam uma forma de umbanda de orientação africana, com elementos provenientes do setor pobre, negros e mulatos. Entre estes estava a Confederação Espírita Umbandista, fundada em 1952 por Tancredo da Silva Pinto, declaradamente africanista, "com a finalidade de restabelecer a tradição antiga, em toda a sua força e pureza primitiva". Bem diferente queria ser a Associação Umbandista Brasileira, comandada por Lourenço Braga, que também pretendia reunir, sob uma única direção, "todos os centros, grêmios, tendas, cabanas, terreiros, agremiações, sociedades e associações, que praticam o espiritismo nos moldes de umbanda". Nesta associação os terreiros deviam chamar-se "tendas"; e nelas não se permitiria bater tambores, nem usar pembas pretas ou vermelhas, punhais, bebidas, roupas de cores diferentes da branca; nem se toleraria cantar no ritmo de jêje, nagô, banto, keto, angola ou omolocô, mas apenas "em ritmo de umbanda e sem alterar a voz em demasia"; nelas os médiuns só trabalhariam vestidos de branco, calçados com sapatos de corda ou descalços, os homens de calça branca e camisa branca, as mulheres de blusa e saia brancas; não seria permitida a matança de quaisquer animais, nem comida de santo, nem despachos em nenhum lugar; mas seria facultado o uso de
defumadores, velas, pembas brancas ou de cor (menos as pretas e vermelhas, que são do exu), banhos de descarga, breves, patuás, seixos, conchas, fitas, figas de guiné e arruda...  Comentava Tancredo da Silva Pinto, o grande chefe angolano que iniciou 3.576 filhos-desanto:  "Terreiro de umbanda que não usar tambores e outros instrumentos rituais, que não cantar pontos em linguagem africana, que não oferecer o sacrifício de preceito e nem preparar comida de santo, pode ser tudo, menos terreiro de umbanda".

Era o cisma. 
Em 1955 formou-se então o Colegiado Espírita do Cruzeiro do Sul, tentando reunir e unificar as facções. A nova coalizão agrupou as cinco federações mais ativas do Rio e teve na UEUB sua principal promotora, incluindo também a confederação liderada pelo angolanista Tancredo da Silva Pinto, que foi nomeado um de seus presidentes. Este colegiado organizou e realizou o II Congresso de Umbanda, em 1961, com a presença de milhares de umbandistas (no  Maracanãzinho) e representantes de dez Estados. Membros dos setores profissionais e políticos declararam abertamente sua crença na umbanda e defendiam sua nova religião nas assembléias estaduais. Grande, muito grande, foi sobretudo a influência dos militares e não poucos oficiais do exército e da polícia se transformaram em líderes da umbanda.
   Nesta década de 50 aumentaram também as migrações internas, da zona rural para as periferias das grandes cidades, fazendo crescer as favelas e a miséria humana. Nelas entrou a umbanda Com suas mirabolantes promessas de contato perceptível com os espíritos do além, capazes de resolver os problemas dos pobres. 
   Era uma nova maneira de fazer caridade: mediante a necromancia e a magia. Lembrada do preceito divino que interdita a evocação dos falecidos ou de quaisquer outros espíritos do além, não podia a Igreja abrir-se para este tipo de filantropia. 
8 . A década de 50 é também o tempo da institucionalização da umbanda em São Paulo.
   Suas federações se ligam com as do Rio. Apenas em 1953 apareceram em São Paulo as duas primeiras federações, das quais ainda está em atividade a FUESP: Federação Umbandista do Estado de São Paulo. Só na década de 60 organizam-se em São Paulo 15 diferentes federações de umbanda. Segundo a pesquisa promovida pelo Centro de Estudos da Religião Douglas Monteiro, de São Paulo, todas as federações tinham mais ou menos os mesmos objetivos: 
19) filiar terreiros, registrando-os em cartório e conferindo-lhes proteção e assistência jurídica; 
29) apresentar a umbanda como sendo uma religião cristã; 
39) praticar a caridade mediante a criação de entidades assistenciais e a prática espírita da evocação dos mortos; 
49) combater a comercialização das práticas religiosas e zelar pelo bom nome público de umbanda; 
59) promover a unificação institucional e a codificação doutrinário-ritual; 
69) representar a umbanda e intermediar os terreiros em suas relações com o aparato burocrático legal.   Mas seu grande propósito seria assegurar à umbanda seu estatuto de religião reconhecida pelo Estado e
legitimar-se frente à sociedade civil.
    Em 1961, por ocasião do I Congresso Umbandista do Estado de São Paulo, sob a liderança do coronel Nelson Braga Moreira (depois general), é criado o Superior Órgão de Umbanda do Estado de São Paulo (SOUESP), congregando boa parte das federações. Até o final da década de 60 havia em São Paulo 21 federações. Na década de 70 apareceram outras 21. E nos primeiros anos da década de 80 temos mais 7 novas federações, sempre em São Paulo. Das 29 federações paulistas nascidas depois de 1970, apenas 13 são confederadas. Para assegurar sua autonomia, grande número de terreiros resiste firmemente a toda tentativa de unificação ou centralização e nega sua filiação a qualquer federação. Serão assim incontroláveis em sua criatividade e nos critérios com que aceitam as orientações "recebidas do além". Pois todos são
convictamente espiritistas, sentindo cada chefe de terreiro os mesmos direitos que no século
passado AK tomara para si. Comanda a arbitrariedade do além.
    Mas o Superior Órgão de Umbanda do Estado de São Paulo (SOUESP) encontrará seu forte rival em outro Superior Órgão de Umbanda e Candomblé do Estado de São Paulo (SOUCESP), fundado em 1976 pelo tenente da polícia militar Hilton de Paiva Tupinambá (o famoso "tenente Tupinambá"), que em 1969 já fundara a União Regional Umbandista (URU) de Taubaté, com sucursais em outras regiões. A confederação destas várias URUs é precisamente a SOUCESP.
   Houve, pois, uma mudança radical com relação à umbanda: se antes os policiais eram os algozes dos terreiros, agora serão seus promotores ou protetores; se antes os pais-de-santo eram tidos como contraventores, agora serão personalidades cortejadas pelos mais influentes políticos.
9. Maria Helena Villas Boas Concone e Lísias Nogueira Negrão, do Centro de Estudos da Religião (CER) Douglas Teixeira, fizeram um levantamento das associações civis umbandistas, espíritas e candomblecistas registradas nos Cartórios de Registro de Títulos e Documentos da cidade de São Paulo, de 1930 a 1982 (d. cadernos do ISER, n. 18, 1985, p. 48). E compuseram o seguinte quadro, no qual os números entre parênteses se referem a porcentagem:

    A impressionante tabela merece algumas observações. As 16.600 associações civis registradas nos cartórios da Capital estão de fato localizadas também em municípios da grande São Paulo e algumas em municípios do interior do Estado. Os números expressam apenas as associações registradas, mas não indicam as que depois, talvez, desapareceram; em compensação, é preciso lembrar também o grande número de terreiros ativos não registrados.
   Os centros espíritas constituem a absoluta maioria nas décadas de 30 e 40. Mas isso não significa sem mais que todos fossem kardecistas, dado que naqueles anos, por causa da repressão policial, muitos terreiros escondiam sua condição umbandista e se diziam simples mente espiritistas, coisa que, como víamos no n. 5, a própria Federação Espírita (kardecista) lhes facultara pela declaração de julho de 1953. Este fato talvez explique também o forte declínio do registro de centros espíritas (kardecistas) a partir de 1960, quando aparece novo e surpreendente fenômeno: o surto do candomblé em São Paulo e seu notável crescimento até nossos dias. Pode-se admitir que na década de 70 muitas associações candomblecistas, antes registradas como umbandistas, assumiram uma mais clara consciência negra, identificando africanismo com candomblé (idealização da tradição nagô como sinônimo de africanidade em certos ambientes do Brasil).
   A explosão umbandista a partir de 1970 é certamente a nota mais marcante da tabela:
7.627 somente em São Paulo! O "retraimento da Igreja" depois do Concílio Vaticano II é indicado pela citada pesquisa como poderoso fator favorável à extraordinária expansão da umbanda.
10. Em 1971 foi fundado pelo grupo ligado ao deputado Atila Nunes Filho, no Rio de Janeiro, o Conselho Nacional Deliberativo da Umbanda (CONDU). Esta nova entidade pretende dar uma orientação comum que informa a prática religiosa dos centros umbandistas e procura estabelecer uma liturgia única a ser seguida pelos fiéis, para consolidar os postulados da religião. O núcleo inicial era composto por cinco grupos: Confederação Nacional Espírita Umbandista dos Cultos Afro-brasileiros; Congregação Espírita Umbandista do Brasil; União Espiritista de Umbanda do Brasil; Primado de Umbanda; e Federação Nacional das Sociedades Religiosas de Umbanda. Depois outras entidades se agregaram. Em 1982 já se haviam unido ao CONDU 41 federações e confederações do Brasil. "Estima-se em 300 mil o número de terreiros filiados a essas federações, que por sua vez associam cerca de 40 milhões de umbandistas", gabava-se o deputado Atila Nunes Filho em 1982. Mas pode haver aqui dois formidáveis exageros: que sejam realmente 300 mil os terreiros afiliados; e que cada terreiro tenha uma média de 130 membros. O Anuário Estatístico de 1984 dava apenas 678.714 espíritas afrobrasileiros.

Mas estes são os que já não querem ser católicos.
A verdade é que ninguém está em condições de informar com exatidão sobre o número dos umbandistas. E a razão é muito simples: a absoluta maioria dos adeptos e simpatizantes da umbanda continua afirmando sua identidade católica. Apenas os umbandistas declaradamente espiritistas, marcados por um kardecismo desvinculado da Igreja católica, negam sua condição católica. A grande massa popular adere a um umbandismo mais africano pouco kardequizado, com evidente fachada católica. Neles perdura a consciência de serem católicos, embora à maneira africana. O cordão umbilical que os liga à mãe-Igreja ainda não foi cortado. O caniço rachado não se quebrou e a mecha que ainda fumega não se apagou (cf. Mt 12,20). Entretanto, já estão presentes forças que tendem a consumar a ruptura fatal.
11 . Não é possível ensaiar um resumo da doutrina umbandista. Já vimos esta lamentação feita por um umbandista: "Cada terreiro procura fazer a umbanda a seu modo, e dentro do conceito que ele próprio imagina, de acordo com sua instrução, com sua capacidade de imaginação, com os seus conhecimentos".
No I Congresso do Espiritismo de Umbanda, em 1941, foi unanimemente aprovada a quinta conclusão, formulada nestes termos:
- "Sua filosofia consiste no reconhecimento do ser humano como partícula da divindade, dela emanada límpida e pura, e nela finalmente reintegrada ao fim do necessário ciclo evolutivo, no mesmo estado de limpidez e pureza, conquistado pelo seu próprio esforço e vontade".
Sente-se aí um eco da doutrina kardecista, mas o próprio AK jamais teria aprovado o panteísmo patente nestas palavras. Sem nenhuma formação séria e sistemática, muitas vezes sem saber falar e escrever corretamente o português, o babalaô, na necessidade, entretanto, de apresentar aos seus sequazes alguma doutrina, soletrou livros "espiritualistas", mastigou tudo aquilo como pôde, misturou, liquidificou e ofereceu lances deste tipo:
- "A vida é Deus em energia e força manifestadas. A morte é Deus colhendo as suas semeaduras. A reencarnação é Deus na seleção das almas que precisam depurar-se. Natureza é matéria de Deus, é Deus-mãe" (AB'D' Ruanda, Lex umbanda. Catecismo. Rio, 1954, p. 48). 
- "Como no cristianismo, no bramanismo e noutras religiões, o espírito supremo, o absoluto, é trino, e em umbanda os seus três aspectos têm as seguintes denominações: Obatalá, corresponde ao Pai, no cristianismo, ao brama no hinduísmo, a Osíris, na trindade dos antigos egípcios; Oxalá, correspondendo ao Filho, no cristianismo, a Visnu no hinduísmo, a Hórus, na trindade egípcia; o Filho é Cristo no catolicismo e Jesus no kardecismo; lfá, corresponde ao Espírito Santo no catolicismo, Isis, na trindade dos egípcios, Maya no hinduísmo" (Catecismo de umbanda, Rio, 1954, sem indicação de autor).
    A antropologia dos terreiros se caracteriza pela filosofia da pluralidade das existências. A quarta conclusão unanimemente aprovada pelo I Congresso do Espiritismo de Umbanda soa
assim:
- "Sua doutrina baseia-se no princípio da reencarnação do espírito em vidas sucessivas na terra, como etapas necessárias à sua evolução planetária". 
É a mesma doutrina de AK. Até mesmo a Confederação Espírita Umbandista, que quer restaurar a antiga doutrina africana, em uma de suas obras "oficiais", declara: "O umbandista acredita na lei das reencarnações, na lei da evolução das almas, aceita a revelação de Jesus Cristo" (Doutrina e ritual de umbanda, Rio, 1951, p. 68); mas os mesmos autores, em Fundamentos da um banda, Rio, 1956, p. 58, esclarecem: "A umbanda não tem nada com a doutrina de Kardec". De sua parte, Emanuel Zespo, "o codificador de umbanda", ensina que "o espiritismo de umbanda aceita integralmente a revelação kardeciana" (O que é a umbanda, Rio, 1949, p. 47). E na p. 51 escreve:
- "Dos diversos tipos de espiritualistas existentes no mundo, o umbandista é dos que praticam a mediunidade espiritualista, e, como os espíritas, o umbandista comunica-se com os desencarnados, aceita a lei das reencarnações, aceita a doutrina do Evangelho, e procura praticar a caridade como a entendeu Kardec. A umbanda aceitou a comunicação com os desencarnados, a terceira revelação kardeciana, absorvendo do espiritismo todos os seus ensinamentos". 
    No meio de tantas idéias confusas e afirmações contraditórias, há, no entanto, este princípio comum a todos: a evocação dos falecidos para confabular com eles. E neste ponto, apenas neste, se identificam com AK e são espíritas. E para qualificar-se como espíritas podem os umbandistas apoiar-se em não poucas palavras de AK e que já vimos. 
12. Este é o confuso universo espiritista. A verdade é que, depois de AK, não apareceu outro, igual a ele na clareza da exposição, na elegância do estilo e na capacidade de raciocínio. Existem ainda outras organizações não diretamente espiritistas, mas que em suas práticas e doutrina muito se aproximam do espiritismo. Lembro algumas: 
- O "Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento": foi fundado em 27-6-1909, pelo Sr. Antônio Olívio Rodrigues. Tem sua sede central em São Paulo e possui mais de 1.500 centros (eles dizem "tattwas") espalhados por todo o Brasil, com quase meio milhão de sócios inscritos. 
Estão também firmemente centrados na idéia da reencarnação.
- A "Teosofia", fundada por Helena Petrowna Hahn, casada com o general russo Blavatsky, do qual se separou um ano depois, mas conservou o nome. Esteve em. Paris, onde se transformou em médium espírita e entrou no grupo de Allan Kardec, herdando sua doutrina reencarnacionista. No Brasil a teosofia está dividida.
- Os "Rosacruzes". Temos no Brasil várias organizações diferentes de "rosacruz". A mais difundida é a AMORC: Antiga e Mística Ordem Rosae Crucis, fundada em 1915, em Nova Iorque, por Harve Spencer Lewis (1883-1939). Também adota a doutrina da reencarnação. 
   Temos ainda a "Fraternidade Rosacruz", fundada por Max Heindel, nos Estados Unidos, que se havia separado de Rudolf Steiner, criador da "Antroposofia".
- E temos mais: a Ordem dos Iluminados, a Ordem Esotérica do Mentalismo, a Ação Cristã Evolucionista, o Energismo, o Neopitagorismo, a Logosofia, o Ioguismo, várias organizações de Ocultismo, Astrologia e outras artes divinatórias. . .
Entendo agora bem estas palavras do Apóstolo na segunda carta a Timóteo, capítulo 4, versículos 3-4: "Virá um tempo em que alguns não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, segundo os seus próprios desejos, como que sentindo comichão nos ouvidos, se rodearão de mestres. Desviarão os seus ouvidos da verdade, orientando-se para as fábulas". Ou estas de Jesus Cristo: "Eu vim em nome de meu Pai, mas não me acolheis; se alguém viesse em seu próprio nome, vós o receberíeis. Como podereis crer, vós que recebeis glória uns dos outros, mas não procurais a glória do Deus único?" (10 5,43-44).

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Fonte:
Espiritismo – orientação para católicos

Frei Boaventura Kloppenburg
7ª ed. 2002

DOUTRINA ESPÍRITA E MENSAGEM CRISTÃ


  No Brasil, o movimento criado por AK é mantido e divulgado pela Federação Espírita Brasileira, fundada em 1884, que a propõe sistematicamente não apenas como "a religião", mas também como "espiritismo cristão" (sua revista oficial, Reformador, que começou em 1883, então como "órgão evolucionista", se apresenta agora no subtítulo como "Revista do Espiritismo Cristão"). 

  Embora o próprio AK jamais tenha usado esta expressão, tomada de J. B. Roustaing (1865), ofereceu-lhe, no entanto, um bom fundamento para isso quando proclamou que o espiritismo é a realização das promessas de Jesus Crista acerca do Consolador e a apresentou como "a Terceira Revelação"; e quando endossou este "aviso do além", recebido no dia 9-8-1863: "Aproxima-se a hora em que te será necessário apresentar o espiritismo qual ele é, mostrando a todos onde se encontra a verdadeira doutrina ensinada pelo Cristo. Aproxima-se a hora em que, à face do céu e da terra, terás de proclamar que o espiritismo é a única tradição verdadeiramente cristã e a única instituição verdadeiramente divina e humana" (cf. sua Obras póstumas, 20ª - ed., p. 308); ou quando aceitou esta profecia recebida no dia 15-4-1860: "O espiritismo... restaurará a religião de Cristo" (ib., p. 299). Em O Evangelho segundo o espiritismo (cito agora a 90ª - ed., p. 59) escreve AK: "Assim como o Cristo disse: 'Não vim destruir a lei, porém cumpri-la', também o espiritismo diz: não venho destruir a lei cristã, mas dar-lhe execução. Nada ensina em contrário ao que ensinou o Cristo". Semelhantes afirmações são comuns entre os espíritas e pode ser que sejam sinceras, mas mostram um desconhecimento profundo da doutrina do Evangelho segundo Mateus, Marcos, Lucas e João e segundo o ensinamento apostólico contida em suas cartas. O Reformador, órgão oficial do nosso kardecismo, de março de 1981, num artigo sobre a missão do Consolador (que seria o Espírito Santo segundo o Evangelho de são João), conclui: "É missão, pois, do espiritismo devolver ao cristianismo a sua pureza original, libertando-o dos dogmas e das idéias humanas nele introduzidas" (p. 85).

Veremos agora como se fez esta fundamental operação libertadora:
1. A revelação divina 
  Para a generalidade dos cristãos de todos os tempos, sejam eles católicos, ortodoxos ou protestantes, os livros da Sagrada Escritura são divinamente inspirados. É um princípio inconcusso ("dogma") dos cristãos. No credo espírita de AK não entra este ponto fundamental.

  Jamais a afirma em nenhuma de suas obras. Mas com freqüência se compraz em mostrar o que ele considera absurdos e contradições da Bíblia. No órgão oficial da Federação Espírita Brasileira, Reformador, janeiro de 1953, p. 23, encontramos a posição bem definida dos nossos espíritas perante a Bíblia: "Do Velho Testamento já nos é recomendado somente o Decálogo e do Novo Testamento apenas a moral de Jesus; já consideramos de valor secundário, ou revogado e sem valor algum, mais de 90% do texto da Bíblia. Só vemos na Bíblia toda um livro respeitável pelo seu valor cultural, pela força que teve na formação cultural dos povos de Ocidente". Vem de AK dizer que do Antigo Testamento só se aceita como de origem divina o Decálogo (rv, 42). 

  Falando de escritos apostólicos do Novo Testamento, escreve AK: "Todos os escritos posteriores (aos Evangelhos), sem exclusão dos de S. Paulo, são apenas, e não podem deixar de ser, simples comentários ou apreciações, reflexos de opiniões pessoais, muitas vezes contraditórias que, em caso algum, podem ter a autoridade da narrativa dos que receberam diretamente do Mestre as instruções" (VII, 110). Esta posição negativa reaparece com freqüência na literatura espírita brasileira. Assim, por exemplo, Carlos Imbassahy, em À margem do espiritismo (2ª - ed.), esclarece que "em matéria de escritura, os espíritas, no a que se referem, é tão unicamente aos Evangelhos. Não os apresentam, porém, como prova, senão como fonte de luz subsidiária, elemento de reforço" (p. 126). Pois "nem a Bíblia prova coisa nenhuma, nem temos a Bíblia como probante. O espiritismo não é um ramo do cristianismo como as demais seitas cristãs. Não assenta os seus princípios nas escrituras. Não rodopia junto à Bíblia. A nossa base é o ensino dos espíritos, daí o nome - espiritismo" (p. 219).

2. A doutrina sobre Deus
  Os conceitos de AK sobre a existência de Deus e seus atributos coincidem de fato com a doutrina cristã. Duas vezes, em seus escritos, AK se refere expressamente ao panteísmo, para rejeitá-lo (I, 53; VII, 179). E contra os panteístas chega a afirmar positivamente uma nítida distinção entre Deus e o Universo, acusando o panteísmo de "confundir o Criador com a criatura"; e, por isso, declara inequivocamente: "As obras de Deus não são o próprio Deus" (I,54). Não obstante, por vezes tem expressões com sabor panteísta. Assim quando diz que "ignoramos" se a inteligência é uma "emanação da Divindade" (I, 56); ou quando o "fluido
universal" toma qualidades panteístas; ou quando esclarece que os espíritos "se acham mergulhados no fluido divino" (VI, 63). Já Leão Denis, outro patriarca do espiritismo, então membro da equipe de codificação da doutrina espírita, resvalou para um evidente monismo panteísta. Segundo seu modo de falar, "Deus é a grande alma universal, de que toda alma humana é uma centelha, uma irradiação.

  Cada um de nós possui, em estado latente, forças emanadas do divino foco" (assim em Cristianismo e espiritismo, 5ª - ed., p. 246). Fala com freqüência de Deus como "divino foco", "supremo foco do bem e do belo", "o grande foco divino" etc. Também em outra obra sua, Depois da morte, 6ª - ed., voltam expressões panteísticas: "Deus é infinito e não pode ser individualizado; isto é, separado do mundo, nem subsistir à parte" (p. 114); ou: "o Ser supremo não existe fora do mundo, porque este é a sua parte integrante e essencial" (p. 124). Em vez do "Deus fantástico da Bíblia", ele quer o "Deus imanente, sempre presente no seio das coisas" (p.213): "O universo não é mais essa criação, essa obra tirada do nada de que falam as religiões. É um organismo imenso animado de vida eterna" (p. 123); e em seguida explica que Deus está
para o universo como a alma para o corpo: "O eu do universo é Deus" (p. 349).

3 . A Santíssima Trindade
  Todos os cristãos - católicos, ortodoxos e protestantes professam sua fé na Santíssima Trindade. É o mistério central da fé e mensagem cristã, desde os primórdios do cristianismo. Mas o credo espírita proposto por AK desconhece totalmente a Santíssima Trindade. 

  A posição de AK, no conjunto de suas obras, é de absoluto e sistemático silêncio com relação a esta doutrina cristã. Seu silêncio era apenas oportunista. Na realidade, em seu sistema de pensamento não cabia este mistério cristão, não porque para ele "absolutamente não há mistérios" (VII,201), mas porque não há lugar para uma intensa vida divina intratrinitária, dado que, segundo AK, o Deus que não cria incessantemente, desde toda a eternidade, seria um Deus solitário e ocioso (cf. I, 56; VI, 107). Mas se AK julgou mais oportuno não negar abertamente o mistério trinitário, seus seguidores não compartilham este ponto de vista. Já Leão Denis, em Cristianismo e espiritismo, p. 74, abre sua crítica dos nossos principais dogmas com estas palavras: "Começa com a estranha concepção do Ser divino, que se resolve no mistério da Trindade". Depois explica: "A noção da Trindade, colhida numa lenda hindu que era a expressão de um símbolo, veio obscurecer e desnaturar essa alta idéia de Deus... Essa concepção trinitária, tão incompreensível, oferecia, entretanto, grande vantagem às pretensões da Igreja. Permitia-lhe fazer de Jesus Cristo um Deus" (p. 75). No Brasil, o espiritismo em peso ou desconhece ou nega a Santíssima Trindade.

4. A doutrina sobre Jesus
  Professam os cristãos que Jesus é verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. A afirmação da divindade de Jesus é fundamental para a fé cristã. Mas este Jesus não entra no credo espírita formulado por AK. Ele nos deixou entre suas Obras póstumas um "Estudo sobre a natureza de Cristo", de 41 páginas, todo ele tendenciosamente orientado para provar que Jesus não era Deus. Com este objetivo nega, sucessivamente, o valor dos milagres, das palavras de Jesus, da opinião dos Apóstolos e das profecias messiânicas. Mas nos dias de AK surgiu um advogado de Bordéus chamado João Batista Roustaing, que teve seu primeiro contato com o espiritismo em 1861 e em 1865 publicou sua obra: "Espiritismo cristão ou Revelação da Revelação", em três volumes. Sua tese central: o corpo de Jesus não era real, de carne e osso, mas aparente e meramente fluídico. Repetia o docetismo do primeiro século cristão. Sua tese não foi aceita por AK. Mas no Brasil a Federação Espírita, desde sua fundação, propaga a obra de Roustaing. Bittencourt Sampaio, Sayão, Bezerra de Menezes, Guillon Ribeiro e outros conhecidos dirigentes da Federação Espírita são rusteinistas professos. Guillon Ribeiro, que foi  presidente da Federação em 1920-1921 e de 1930 a 1943 e tradutor das obras de AK, compendiou a cristologia espírita no título que deu ao livro: Jesus, nem Deus nem homem, reeditado e divulgado pela Federação Espírita.

5. A doutrina sobre a redenção
  "É pelo sangue de Jesus Cristo que temos a redenção, a remissão dos pecados, segundo a riqueza de sua graça que ele derramou profusamente sobre nós", explicava são Paulo aos efésios (1,7). Nossa redenção pela paixão, morte e ressurreição de Jesus é outra verdade fundamental da fé cristã. Nisso consiste propriamente a "boa nova" ou o "evangelho". Mas nem esta verdade tão central entra no credo espírita de AK. Segundo ele cada um deve ser seu próprio redentor através do sistema das reencarnações. Por isso no espiritismo a soteriologia (ou doutrina sobre a redenção ou salvação do homem) é deslocada da cristologia para a antropologia. Leão Denis o enuncia cruamente quando escreve: "Não, a missão de Cristo não era resgatar com o seu sangue os crimes da humanidade. O sangue, mesmo de um Deus, não seria capaz de resgatar ninguém.

  Cada qual deve resgatar-se a si mesmo, resgatar-se da ignorância e do mal. É o que os espíritos, aos milhares, afirmam em todos os pontos do mundo" (Cristianismo e espiritismo, p. 88). E o Reformador, órgão máximo da propaganda reencarnacionista no Brasil, ensina em seu número de outubro de 1955 (p. 236): "A salvação não se obtém por graça nem pelo sangue derramado por Jesus no madeiro", mas "a salvação é ponto de esforço individual que cada um emprega, na medida de suas forças". Daí esta doutrina de AK: "Toda falta cometida, todo mal realizado é uma dívida contraída que deverá ser paga; se não for em uma existência, sê-lo-á na seguinte ou seguintes" (V, 88). Ele reconhece a necessidade e o valor do arrependimento; mas este arrependimento não basta ao pecador para obter o perdão divino. Segundo ele, a contrição é apenas o início da expiação e tem como conseqüência o desejo de "uma nova encarnação para
se purificar" (I, 446). "O arrependimento concorre para a melhoria do espírito, mas ele tem que expiar o seu passado" (I, 448); "o arrependimento lhe apressa a reabilitação, mas não o absolve" (I, 450); "o arrependimento suaviza os travos da expiação, abrindo pela esperança o caminho da reabilitação; só a reparação, contudo, pode anular o efeito, destruindo-lhe a causa. Do contrário, o perdão seria uma graça, não uma anulação" (V, 90); e a graça é coisa que não existe porque "seria uma injustiça" (IV, 76). No livro Roma e o Evangelho (5ª - ed.), o espírito de "Maria" dita estas palavras: "Jesus Cristo não podia, nem quis assumir todas as responsabilidades individuais, contraídas ou por contrair, emanadas dos pecados dos homens, e muito menos podia, pelo sacrifício da sua vida, remir a humanidade da pena de desterro a que fora condenada... A redenção da humanidade não se firma, pois, nos méritos e sacrifícios de Jesus, e, sim, nas boas obras dos homens... Que cegueira! Quanta aberração! Supor e afirmar que os sofrimentos e a morte do Justo foram ordenados do alto, em expiação dos pecados de todos, é a mais orgulhosa das blasfêmias contra a justiça do Eterno".

6. A doutrina sobre a Igreja
  "Creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica." É a profissão cristã. Nem esta profissão entra no credo espírita. Com a negação da doutrina cristã sobre a redenção e santificação dos homens, contestam-se conseqüentemente também todos os meios instituídos por Jesus Cristo para a salvação e santificação. A começar pelo batismo. Jesus mandou aos apóstolos ir pelo mundo inteiro, ensinar a todos tudo quanto ele lhes ordenara, batizando a todos "em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo" (Mt 28,19-20), esclarecendo: "Aquele que crer e for batizado será salvo; o que não crer será condenado" (Mc 16,16). No Brasil, os espíritas, fiéis à doutrina codificada por AK, já não batizam nem fazem batizar seus filhos. Nem teria sentido. Pois é pelas reencarnações que os homens devem alcançar a perfeição. Na última ceia Jesus instituiu a eucaristia e ordenou aos apóstolos: "Fazei isto em minha memória" (Lc 22,19). Mas os espíritas não o fazem. Nem teria sentido. Pois, segundo eles, o mistério pascal não tem valor de sacrifício pelos pecados dos homens. Jesus disse aos apóstolos: "Aqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados" (Jo 20,23). Mas os espíritas não procuram receber o perdão divino que lhes é generosamente oferecido. Nem teria sentido. Pois somente mediante as reencarnações se alcança o perdão. Jesus disse a Pedro: "Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do reino dos céus e o que ligares na terra será ligado nos céus e o que desligares na terra será desligado nos céus" (Mt 16,18-19).

  Mas os espíritas não dão nenhuma importância nem a Pedro e seus sucessores, nem à Igreja que Jesus dizia "sua", nem ao poder das chaves que o Senhor Jesus entregou ao chefe do colégio apostólico. Jesus declarou aos apóstolos: "Quem vos ouve a mim ouve, quem vos despreza a mim despreza, e quem me des preza, despreza aquele que me enviou" (Lc 10,16).

  Para os espíritas tudo isso já está superado. Pois eles vão receber as orientações dos espíritos que baixam em seus centros. Proclamando a nulidade dos sacramentos, quer AK que o espiritismo não tenha "nem culto, nem rito, nem templos" (VII, 235). E o Conselho Federativo Nacional dos espíritas, em sua reunião de 5-7-1952, declarou, "por unanimidade, que o espiritismo é religião sem ritos, sem liturgia e sem sacramentos". Proclama-se assim a total inutilidade da Igreja, que será substituída pelo espiritismo. No livro Depois da morte (p. 80), profetiza Leão Denis: "Chegará a ocasião em que o catolicismo, seus dogmas e práticas não serão mais do que vagas reminiscências quase apagadas da memória dos homens, como o são
para nós os paganismos romanos e escandinavos".

  Não seria difícil continuar a lista de negações. Assim, para dar apenas mais alguns exemplos, o espiritismo nega a criação da alma humana; recusa a união substancial entre corpo e alma; afirma que não há anjos e demônios; repudia os privilégios de Maria Santíssima; não admite o pecado original; contesta a graça divina; abandona toda a doutrina do sobrenatural; rejeita a unicidade da vida humana terrestre; ignora o juízo particular depois da morte; não concede a existência do purgatório; ridiculariza o inferno; reprova a ressurreição da carne; e desdenha o juízo final. Em uma palavra: renuncia a todo o credo cristão.

  Em que consiste, pois, seu anunciado "cristianismo"? Tudo é simplesmente reduzido à aceitação de alguns princípios morais do Evangelho, tal como AK aprendera em sua juventude, no Instituto de Pestalozzi, em Yverdun, na Suíça. Seu manual "cristão" é unicamente O evangelho segundo o espiritismo, "com a explicação das máximas morais do Cristo em concordância com o espiritismo e suas aplicações às diversas circunstâncias da vida", que AK publicou em 1864. Na Revue Spirite de junho de 1867, AK critica a obra de J. B. Roustaing (que ensinava que o corpo de Jesus era meramente aparente ou fluídico) e revela que em O evangelho segundo o espiritismo ele se circunscrevera simplesmente às máximas morais que são, geralmente, claras e nem poderiam ser interpretadas de maneiras diversas e são, por isso, aceitas por todos. 

  E então revela: "Essa a razão que nos levou a começar por aí, a fim de sermos aceitos sem contestação, aguardando, relativamente ao mais, que a opinião geral se encontrasse familiarizada com a idéia espírita". Passa então a criticar Roustaing, dizendo: "O autor desta nova obra julgou dever seguir outra orientação: em lugar de proceder gradativamente, quis de um salto atingir o fim. Assim é que tratou de certas questões que ainda não julgáramos oportuno abordar”. 

  AK era oportunista. Daí seu proposital silêncio sobre certas questões, por exemplo, a Santíssima Trindade. Seu único estudo de caráter teológico, embora negativo, sobre a natureza de Jesus Cristo, não foi por ele publicado, mas apareceu apenas depois em suas Obras póstumas. Ele recomenda esta norma de agir: "Cumpre nos façamos compreensíveis. Se alguém tem uma convicção bem firmada sobre uma doutrina, ainda que falsa, necessário é que lhe tiremos essa convicção, mas pouco a pouco. Por isso é que muitas vezes nos servimos de seus termos e aparentamos abundar nas suas idéias: é para que não fique de súbito ofuscado e não deixe de se instruir conosco" (III, 336). 

  Sendo o Brasil um país tradicionalmente católico ou cristão, os espíritas, de acordo com o citado princípio de AK, se apresentam como "cristãos" e difundem principalmente O evangelho segundo o espiritismo. Começam por dizer que o espiritismo é apenas ciência e filosofia, não cogitando de questões dogmáticas; que eles não combatem crença alguma; que o católico, para ser espírita, não precisa deixar de ser católico; que todas as religiões são boas, contanto que se faça o bem e se pratique a caridade etc. 

  E por isso vão dando nomes de santos nossos aos centros espíritas. O Conselho Federativo resolveu prescrever a seguinte norma geral: "As sociedades adesas (à Federação Espírita Brasileira), mediante entendimento com a Federação, quando esta julgar oportuno e as convidar para isso, cuidarão de modificar suas denominações no sentido de suprimir delas o qualificativo de 'santo' e de substituir por outras, tiradas dos princípios e preceitos espíritas, dos lugares onde tenham sua sede, das datas de relevo nos anais do espiritismo e dos nomes dos seus grandes pioneiros". Assim, por exemplo, começa algum centro espírita por chamar-se "Centro são Francisco de Assis"; depois, quando a Federação julgar oportuno, suprimirá o qualificativo "santo"; e afinal, quando seus adeptos já estiverem suficientemente distanciados da Igreja, será "Centro Allan Kardec"... Assim era antes. Já agora, em 1985, o Conselho Federativo, no "Manual de Administração das Instituições Espíritas", determina "não tomar por patronos, os nomes de arcanjo, anjo, pai, caboclo, santo e congêneres".

Fonte:

Espiritismo – orientação para católicos
Frei Boaventura Kloppenburg
7ª ed. 2002