O ESPIRITISMO DE UMBANDA


   No fim de sua vida, AK, como lemos em suas Obras póstumas, via com profunda inquietação o problema da unidade do espiritismo. Seu último manuscrito, sobre a "Constituição do espiritismo", toca também a questão dos cismas. Para garantir a unidade, proclamava como condição fundamental "que todas as partes do conjunto da doutrina sejam determinadas com precisão e clareza". Exatamente quando se dispunha a formular os "princípios fundamentais da doutrina espírita, reconhecidos como verdades inconcussas", foi chamado pelo Senhor da vida.
   Na Constituição falava também da "necessidade de uma direção central superior, guarda vigilante da unidade progressiva e dos interesses gerais da doutrina"; e fazia sentir sua inquietação por não ver, "a surgir no horizonte, o seu condutor". Sem isso, escrevia ele, o espiritismo corre o risco de "caminhar ao léu". Quis mesmo estabelecer um "formulário de fé e adesão, por escrito", para garantir "a unidade "sob o império de uma mesma fé, de uma comunhão de pensamentos, de modos de ver e de aspirações". Dir-se-ia que desejava um papa... Mas tudo isso não se concretizou. E o espiritismo iniciou sua marcha ao léu... "Todos
queriam a união dos espíritas em tomo de um centro diretor. Todos, porém, queriam ser esse centro."
   No Brasil, a reação mais violenta e extrema dentro do espiritismo kardecista surgiu em 1910, com o Sr. Luiz de Mattos, fundador do "Espiritismo Racional e Científico (Cristão)". Naquele ano, o padre Antônio Vieira, "em corpo astral", o escolheu para iniciar o novo movimento. Contra o aspecto excessivamente religioso dos kardecistas, acentuou o lado científico e racional das comunicações com o "mundo astral". Em suas obras investe furiosamente contra o kardecismo, "a maior praga que na terra existe, porque, além dos perversos instintos que os dominam, são dominados pela indolência mental, não gravam senão aquilo que
agrada a sua animalidade"; "um saco de patifarias enfeitado com as rendas sem caridade não há salvação e outras frioleiras". Com relação à Igreja, estes espiritistas racionalistas são igualmente agressi vos. Eles se orgulham de ter uma filosofia própria e de poder explicar com exatidão o que é o espírito, a matéria, o astral, o fluido, o pensamento, o espaço, a aura e a evolução. E todos quantos não aceitam estas explicações, são cretinos e obsedados. Menos violenta, mas mais profunda e incomparavelmente mais popular, foi outra cisão, da qual surgiu o assim chamado espiritismo "de umbanda". Informa o Conselho Nacional Deliberativo da Umbanda (CONDU) que no dia 15 de novembro de 1907 o Sr. Zélio
Fernandino de Moraes, de tradicional fanu1ia fluminense, compareceu a uma sessão da Federação Espírita de Niterói e lá "recebeu um aviso" do além: seria o responsável pela organização de um novo culto no Brasil.
No dia seguinte foi fundado o primeiro terreiro de umbanda: a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade. Dez anos depois Zélio de Moraes criou mais sete tendas espíritas, todas de "Nossa Senhora". Em 1937 organizou a Federação Espírita de Umbanda do Brasil, posteriormente denominada União Espiritista da Umbanda do Brasil (UEUB), que, em 1941, promoveu o I Congresso do Espiritismo de Umbanda, para ensaiar a codificação formal da doutrina e do ritual.

Que acontecera?
2. As pesquisas feitas por Diana Brown ("Uma história da umbanda no Rio", em Cadernos de ISER, n. 18, 1985) revelam que Zélio de Moraes e seu grupo eram kardecistas insatisfeitos com o elitismo da prática espírita, que começaram a visitar terreiros de cultos africanos localizados nos bairros populares dos arredores do Rio de Janeiro e de Niterói. Todos eles eram brancos e da classe média: funcionários públicos, comerciantes, militares, profissionais liberais.
   Deu-se então o encontro do kardecismo francês com a religião africana de origem banta, caracterizada pelo culto aos antepassados ou ancestrais, que também eram evocados à maneira espiritista e se manifestavam durante o ritual africano. Era evidente a afinidade entre espiritismo e culto banto. Ritual e doutrinariamente pobre, a prática banta ("macumba") já se havia enriquecido com elementos do culto nagô ("candomblé"), sobretudo pela adoção de orixás iorubanos (também ancestrais, embora de certa categoria e após um processo de ancestralização), mas sem deixar de estar sempre centrado na evocação de seus
próprios antepassados, que já então se manifestavam ora como "pretos velhos", ora como "caboclos" ou "crianças". Na época já se realizara também o sincretismo do culto africano (sudanês e banto) com a religiosidade popular católica.
   Os kardecistas insatisfeitos, congregados por Zélio de Moraes, passaram a preferir as entidades que se manifestavam nos cultos bantos como mais competentes nas curas e no tratamento de doenças e na solução de outros problemas humanos. Os ritos africanos lhes pareciam mais estimulantes e dramáticos que o seco e monôtono cerimonial kardecista (espiritismo "de mesa"). Mas não aceitavam ritos que envolviam sacrifícios de animais e a presença de espíritos trevosos ("exus"). Nem concordavam com as bebedeiras e a exploração econômica dos clientes. A dispendiosa roupagem sacral feminina (das "baianas") foi substituída
por um higiênico avental branco, incentivando-se também o uso do tênis, em vez de dançar descalço. Simplificou-se o culto, a defumação e os cumprimentos do altar. 
   Houve, pois, um processo de desafricanização do rito banto-nagô. Fiéis ao corpo doutrinário do kardecismo, Zélio de Moraes e seus adeptos adotaram ritos de sabor africano e começaram a confabular com pretos velhos e caboclos do além.

Surgiu assim o espiritismo de umbanda.
3. "Umbanda" era o nome dado ao chefe do culto banto. O termo ainda hoje é comum em Angola, como me informaram vários missionários que lá trabalharam. O folclorista angolano Oscar Ribas, na obra Ilundo, publicada pelo Museu de Angola em 1958, confirma que o dirigente do terreiro, palavra que lá também é usada para indicar o lugar de culto, quando é homem, chama-se pai-de-umbanda, quando é mulher, mãe-de-umbanda. No dicionário dos dialetos Ouimbunda e Umbunda, de A. da Silva Maia, edição de 1955, a palavra "umbanda" significa simplesmente: ''feitiçaria, feitiço, feiticeiro". De um missionário angolano recebi
acerca desta palavra os seguintes dados: "Umbanda" é um vocábulo da língua umbunda, falada pela tribo do mesmo nome, da raça banta, na região central de Angola (Bailundo, Huambo, Bié, Andulo, Caconda etc.).        O mesmo termo, mais ou menos alterado, encontra-se também em outras tribos afins, como Nhaneca, ao sul de Angola. A palavra pode ter três significados: a) um talismã com a prolação das devidas palavras rituais, a que se atribuem efeitos maravilhosos, causados por espíritos ou almas dos falecidos; b) o próprio talismã, que pode ser um manipanço, raízes de plantas especiais, partes do corpo animal, como o fígado da hiena, unhas, cornos, ossos humanos sobretudo o crânio, moedas etc. As palavras rituais variam segundo o efeito a obter e que podem ter ou finalidade defensiva, contra o feitiço de outros, evitar uma calamidade
etc., ou finalidade ofensiva para provocar doença ou morte de um inimigo, ou com fins benéficos para conseguir riquezas, sorte nos negócios, nas relações, na caça, na agricultura; podem também relacionar-se com os ancestrais falecidos, para apaziguá-los, merecer sua proteção etc.; c) o poder de exercer os atos supramencionados. Arthur Ramos, em O negro brasileiro (3ª ed., p. 102, nota 150), cita esta informação de
Heli Chatelain, Folks-tales of Angola, de 1894: "U-mbanda é derivada de Ki-mbanda, pelo prefixo U., como u-ngana o é de ngana. Umbanda é: 1) a faculdade, ciência, arte, ofício, negócio: a) de cura por meios de medicina natural (remédios) ou medicinas supematurais (encantos); b) de adivinhação do desconhecido pela consulta aos espíritos dos mortos, aos gênios, demônios, que não são espíritos humanos nem divinos; c) de indução destes espíritos humanos e não-humanos a influir sobre os homens e a natureza para o bem-estar ou a desgraça humana; 2) as forças atuantes na saúde, na adivinhação e na influência dos espíritos; 3) os
objetos (encantos) que são supostos a estabelecer e determinar a conexão entre os espíritos e o
mundo físico".
   No já citado livro Ilundo, o folclorista angolano Oscar Ribas ensina: "Na religião negra nada se opera sem a influência dos espíritos. Através dos seus instrumentos de mediunidade, eles agem para todas as circunstâncias, quer para o bem, quer para o mal. São os espíritos que revelam as causas das enfermidades, azares, tudo, enfim, o que se pretende saber. São os espíritos que receitam por intermédio de seus sacerdotes, quer no momento da atuação, quer em sonho também. E são os espíritos, ainda, que tomam à sua guarda quem a eles recorre, ou, inversamente, também são eles que matam, quando a isso os induzem".
4. Mas não eram os umbandas de Angola que entusiasmaram o grupo fundador da umbanda no Brasil. Por ocasião do I Congresso do Espiritismo de Umbanda, em 1941, o grupo, então ainda numericamente insignificante, tinha a preocupação de mostrar que a umbanda é de origem antiquíssima, vem dos hindus, contemporânea dos Vedas, que depois passou à África, donde veio para o Brasil. Era este o teor das duas primeiras conclusões unanimemente aceitas por aquele congresso:
"I. O espiritismo de umbanda é uma das maiores correntes do pensamento humano existente na terra há mais de cem séculos, cuja raiz provém das antigas religiões e filosofias da Índia, fonte de inspiração de todas as demais doutrinas filosóficas do Ocidente".
"2. Umbanda é palavra sânscrita, cuja significação em nosso Idioma pode ser dada por qualquer dos seguintes conceitos: Princípio Divino, Luz Irradiante, Fonte Permanente de Vida, Evolução Constante."

Era a desafricanização.
   Os primeiros anos da incipiente umbanda não foram fáceis. Uma lei de 1934 (Getúlio Vargas) colocou os grupos religiosos de inspiração africana sob a jurisdição do Departamento de Tóxicos e Mistificações da polícia. Para poderem funcionar, tinham que solicitar registro especial neste Departamento. Naqueles anos houve repressão e perseguição policial. Numerosos grupos ficavam na clandestinidade ou, quando se registravam, procuravam esconder suas ligações ou inspirações africanas e se registravam como espiritistas".
5. A alta direção da Federação Espírita Brasileira, ortodoxamente kardecista, embora  hostil ao novo tipo de espiritismo, em nota publicada no Reformador, seu órgão oficial, de julho de 1953, fez esta declaração: "Todo aquele que crê nas manifestações dos espíritos é espírita; ora, o umbandista nelas crê, logo o umbandista é espírita”. E esclarecia: "Os que aceitam o fenômeno espírita como manifestação de 'Satanás', ou como ocasionado somente por forças desconhecidas, esses não são espíritas; mas aqueles que o têm como produzido por espíritos, esses devem ser considerados como adeptos do espiritismo, isto é, espiritistas, admitam ou não a reencarnação e pratiquem ou não rituais que nós não adotamos".

Era o endosso oficial.
Mas tão generosa e tolerante atitude da mais alta autoridade espírita no Brasil, que permitia às tendas umbandistas registrar-se oficialmente como "espíritas" para escaparem da perseguição policial, foi drasticamente modificada pela declaração oficial de 2 de janeiro de 1978, publicada no Reformador de fevereiro de 1978:
"1. É imprópria, ilegítima e abusiva a designação de espíritas adotada por pessoas, tendas, núcleos, terreiros, centros, grupos, associações e outras entidades que, mesmo quando legalmente autorizados a usar o título, não praticam a doutrina espírita, tal como foi clara e formalmente definida no editorial de Reformador de setembro de 1977, ano 95, n. 1.782". Este editorial definia: "Doutrina espírita é o conjunto de princípios básicos, codificados por Allan Kardec, que constituem o espiritismo. Estes princípios estão contidos nas obras fundamentais, que são: O livro dos espíritos, O livro dos médiuns, O evangelho segundo o espiritismo, O céu e o inferno, A gênese. Todas as demais obras, por mais preciosas que sejam ou venham a ser, são e serão obras complementares, sem que isso diminua o extraordinário valor de muitas delas".
"2. O espiritismo é uma doutrina de princípios estabelecidos com clareza e exatidão (...) e não se confunde com quaisquer outras ciências, filosofias, religiões, movimentos, sincretismos, folclore, crenças ou crendices."
"3. Não são espíritas, mesmo que assim se digam, nem médiuns espíritas, mesmo que sejam médiuns, os que não se enquadram nas definições doutrinárias contidas no Editorial de Reformador de novembro de 1977, ano 95, n. 1.784."

Era a excomunhão.
Aliás, já em 1926 o Conselho Federativo da mesma Federação kardecista publicara um parecer oficial sobre "caboclos e africanos". Já então se manifestavam "caboclos" e "pretos velhos" que não se pautavam pela doutrina AK (cf. Reformador, maio de 1978, p. 165), embora também viessem "do além". O além imaginado pelos espiritistas é tão pluralista como este aquém dos mortais.
6. Depois da guerra mundial e dos 15 anos da ditadura de Getúlio Vargas (1945), há o retomo a um governo constitucional. Diminui a perseguição policial. A umbanda pode ser praticada livremente. Criam-se novos centros. Formam-se novas federações. E a umbanda começa a aparecer nos meios de comunicação social, em programas de rádio, em colunas semanais dos principais jornais do Rio e em numerosas publicações de sua própria iniciativa. Em 1949 inicia a circulação do Jornal de umbanda, ainda por iniciativa do grupo Zélio de Moraes. O movimento passa a outros Estados. O pequeno grupo local se transforma em
movimento nacional. Começa a ser proclamado como "a religião do Brasil".
Sobretudo a partir de 1950 muitos terreiros afro-brasileiros, completamente independentes da umbanda pura idealizada por Zélio de Moraes, identificam-se publicamente também com a umbanda. Aparecem e pululam "terreiros de umbanda" de todo tipo. Cada qual dirige seu terreiro ou escreve seu livro inteiramente por conta própria, persuadido de ter assistência especial de alguns "guias" do além. Eis alguns desabafos da época: 
- "Os autores de umbanda se contradizem a si próprios e não apenas a seus colegas" (Samuel Ponze, Lições de umbanda, Rio, 1954, p. 35). E mais: "Reina a anarquia, a incompreensão, a vaidade, a mistificação, a pouca cultura entre a maioria dos umbandistas" (p.26); "cada qual quer ser o maior. Cada chefete de terreiro acha que acima de seu guia ou de seus guias, só Deus" (p. 27).
- "Cada um procura fazer uma umbanda a seu modo, e dentro do conceito que ele próprio imagina, de acordo com a sua instrução, com a sua capacidade de imaginação, com os seus conhecimentos, e, quase nunca, com a orientação dada pelos seus próprios guias" (A. Fontenelle, Exu, Rio, 1952, p. 60).
- "Até hoje, nada de claro ao público, em matéria literária sobre umbanda" (Emanuel Zespo, pseudônimo de Paulo Menezes, Codificação da lei de umbanda, Parte Científica, Rio, 1951, p. 16).
- "A umbanda, no Brasil, difere de Estado para Estado, de cidade para cidade, de município para município, de vila para vila e de tenda para tenda" (Lourenço Braga, Um banda e quimbanda, 2ª parte, Rio, 1956, p. 7). Depois explica: "Essa divergência tem sua origem na ignorância, na pretensão, na vaidade e, muitas vezes, na falta de escrúpulos e nas segundas intenções, de alguns de seus praticantes e dirigentes, que para serem adorados pelos que os cercam ou para tirarem quaisquer espécies de vantagens, mesclam e maculam a umbanda, com rituais desnecessários, usados para impressionar os crentes e freqüentadores".
- "Hoje uma vasta onda de mistificação invadiu a umbanda. Criaram, os intrusos, uma umbanda branca, uma umbanda mista, modificaram o ritual sagrado, e pior sob o ponto de vista espiritual, introduziram o comercialismo na seita. Escritores improvisados publicaram livros cheios de erros e fantasias, servindo a umbanda de capa a atividades inteiramente comerciais. 
Para completar a mistificação, pessoas que nada conhecem dos mistérios de umbanda, que nunca foram sacerdotes, que nunca fizeram 'cabeça', abriram centros e tendas, montaram consultórios luxuosos, onde os clientes são atendidos mediante fichas numeradas" (Byron Torres de Freitas e Tancredo da Silva Pinto, Fundamentos de umbanda, Rio, 1956, p. 19). 
7. Para remediar situação tão confusa, multiplicaram-se as federações e confederações. Em meados de 1950 surgiram seis novas federações no Rio, além da já existente UEUB: três foram organizadas por umbandistas do setor médio, seguindo as diretrizes gerais da orientação ritual e doutrinária da umbanda pura (idealizada pelo grupo de Zélio de Moraes). As outras três defendiam uma forma de umbanda de orientação africana, com elementos provenientes do setor pobre, negros e mulatos. Entre estes estava a Confederação Espírita Umbandista, fundada em 1952 por Tancredo da Silva Pinto, declaradamente africanista, "com a finalidade de restabelecer a tradição antiga, em toda a sua força e pureza primitiva". Bem diferente queria ser a Associação Umbandista Brasileira, comandada por Lourenço Braga, que também pretendia reunir, sob uma única direção, "todos os centros, grêmios, tendas, cabanas, terreiros, agremiações, sociedades e associações, que praticam o espiritismo nos moldes de umbanda". Nesta associação os terreiros deviam chamar-se "tendas"; e nelas não se permitiria bater tambores, nem usar pembas pretas ou vermelhas, punhais, bebidas, roupas de cores diferentes da branca; nem se toleraria cantar no ritmo de jêje, nagô, banto, keto, angola ou omolocô, mas apenas "em ritmo de umbanda e sem alterar a voz em demasia"; nelas os médiuns só trabalhariam vestidos de branco, calçados com sapatos de corda ou descalços, os homens de calça branca e camisa branca, as mulheres de blusa e saia brancas; não seria permitida a matança de quaisquer animais, nem comida de santo, nem despachos em nenhum lugar; mas seria facultado o uso de
defumadores, velas, pembas brancas ou de cor (menos as pretas e vermelhas, que são do exu), banhos de descarga, breves, patuás, seixos, conchas, fitas, figas de guiné e arruda...  Comentava Tancredo da Silva Pinto, o grande chefe angolano que iniciou 3.576 filhos-desanto:  "Terreiro de umbanda que não usar tambores e outros instrumentos rituais, que não cantar pontos em linguagem africana, que não oferecer o sacrifício de preceito e nem preparar comida de santo, pode ser tudo, menos terreiro de umbanda".

Era o cisma. 
Em 1955 formou-se então o Colegiado Espírita do Cruzeiro do Sul, tentando reunir e unificar as facções. A nova coalizão agrupou as cinco federações mais ativas do Rio e teve na UEUB sua principal promotora, incluindo também a confederação liderada pelo angolanista Tancredo da Silva Pinto, que foi nomeado um de seus presidentes. Este colegiado organizou e realizou o II Congresso de Umbanda, em 1961, com a presença de milhares de umbandistas (no  Maracanãzinho) e representantes de dez Estados. Membros dos setores profissionais e políticos declararam abertamente sua crença na umbanda e defendiam sua nova religião nas assembléias estaduais. Grande, muito grande, foi sobretudo a influência dos militares e não poucos oficiais do exército e da polícia se transformaram em líderes da umbanda.
   Nesta década de 50 aumentaram também as migrações internas, da zona rural para as periferias das grandes cidades, fazendo crescer as favelas e a miséria humana. Nelas entrou a umbanda Com suas mirabolantes promessas de contato perceptível com os espíritos do além, capazes de resolver os problemas dos pobres. 
   Era uma nova maneira de fazer caridade: mediante a necromancia e a magia. Lembrada do preceito divino que interdita a evocação dos falecidos ou de quaisquer outros espíritos do além, não podia a Igreja abrir-se para este tipo de filantropia. 
8 . A década de 50 é também o tempo da institucionalização da umbanda em São Paulo.
   Suas federações se ligam com as do Rio. Apenas em 1953 apareceram em São Paulo as duas primeiras federações, das quais ainda está em atividade a FUESP: Federação Umbandista do Estado de São Paulo. Só na década de 60 organizam-se em São Paulo 15 diferentes federações de umbanda. Segundo a pesquisa promovida pelo Centro de Estudos da Religião Douglas Monteiro, de São Paulo, todas as federações tinham mais ou menos os mesmos objetivos: 
19) filiar terreiros, registrando-os em cartório e conferindo-lhes proteção e assistência jurídica; 
29) apresentar a umbanda como sendo uma religião cristã; 
39) praticar a caridade mediante a criação de entidades assistenciais e a prática espírita da evocação dos mortos; 
49) combater a comercialização das práticas religiosas e zelar pelo bom nome público de umbanda; 
59) promover a unificação institucional e a codificação doutrinário-ritual; 
69) representar a umbanda e intermediar os terreiros em suas relações com o aparato burocrático legal.   Mas seu grande propósito seria assegurar à umbanda seu estatuto de religião reconhecida pelo Estado e
legitimar-se frente à sociedade civil.
    Em 1961, por ocasião do I Congresso Umbandista do Estado de São Paulo, sob a liderança do coronel Nelson Braga Moreira (depois general), é criado o Superior Órgão de Umbanda do Estado de São Paulo (SOUESP), congregando boa parte das federações. Até o final da década de 60 havia em São Paulo 21 federações. Na década de 70 apareceram outras 21. E nos primeiros anos da década de 80 temos mais 7 novas federações, sempre em São Paulo. Das 29 federações paulistas nascidas depois de 1970, apenas 13 são confederadas. Para assegurar sua autonomia, grande número de terreiros resiste firmemente a toda tentativa de unificação ou centralização e nega sua filiação a qualquer federação. Serão assim incontroláveis em sua criatividade e nos critérios com que aceitam as orientações "recebidas do além". Pois todos são
convictamente espiritistas, sentindo cada chefe de terreiro os mesmos direitos que no século
passado AK tomara para si. Comanda a arbitrariedade do além.
    Mas o Superior Órgão de Umbanda do Estado de São Paulo (SOUESP) encontrará seu forte rival em outro Superior Órgão de Umbanda e Candomblé do Estado de São Paulo (SOUCESP), fundado em 1976 pelo tenente da polícia militar Hilton de Paiva Tupinambá (o famoso "tenente Tupinambá"), que em 1969 já fundara a União Regional Umbandista (URU) de Taubaté, com sucursais em outras regiões. A confederação destas várias URUs é precisamente a SOUCESP.
   Houve, pois, uma mudança radical com relação à umbanda: se antes os policiais eram os algozes dos terreiros, agora serão seus promotores ou protetores; se antes os pais-de-santo eram tidos como contraventores, agora serão personalidades cortejadas pelos mais influentes políticos.
9. Maria Helena Villas Boas Concone e Lísias Nogueira Negrão, do Centro de Estudos da Religião (CER) Douglas Teixeira, fizeram um levantamento das associações civis umbandistas, espíritas e candomblecistas registradas nos Cartórios de Registro de Títulos e Documentos da cidade de São Paulo, de 1930 a 1982 (d. cadernos do ISER, n. 18, 1985, p. 48). E compuseram o seguinte quadro, no qual os números entre parênteses se referem a porcentagem:

    A impressionante tabela merece algumas observações. As 16.600 associações civis registradas nos cartórios da Capital estão de fato localizadas também em municípios da grande São Paulo e algumas em municípios do interior do Estado. Os números expressam apenas as associações registradas, mas não indicam as que depois, talvez, desapareceram; em compensação, é preciso lembrar também o grande número de terreiros ativos não registrados.
   Os centros espíritas constituem a absoluta maioria nas décadas de 30 e 40. Mas isso não significa sem mais que todos fossem kardecistas, dado que naqueles anos, por causa da repressão policial, muitos terreiros escondiam sua condição umbandista e se diziam simples mente espiritistas, coisa que, como víamos no n. 5, a própria Federação Espírita (kardecista) lhes facultara pela declaração de julho de 1953. Este fato talvez explique também o forte declínio do registro de centros espíritas (kardecistas) a partir de 1960, quando aparece novo e surpreendente fenômeno: o surto do candomblé em São Paulo e seu notável crescimento até nossos dias. Pode-se admitir que na década de 70 muitas associações candomblecistas, antes registradas como umbandistas, assumiram uma mais clara consciência negra, identificando africanismo com candomblé (idealização da tradição nagô como sinônimo de africanidade em certos ambientes do Brasil).
   A explosão umbandista a partir de 1970 é certamente a nota mais marcante da tabela:
7.627 somente em São Paulo! O "retraimento da Igreja" depois do Concílio Vaticano II é indicado pela citada pesquisa como poderoso fator favorável à extraordinária expansão da umbanda.
10. Em 1971 foi fundado pelo grupo ligado ao deputado Atila Nunes Filho, no Rio de Janeiro, o Conselho Nacional Deliberativo da Umbanda (CONDU). Esta nova entidade pretende dar uma orientação comum que informa a prática religiosa dos centros umbandistas e procura estabelecer uma liturgia única a ser seguida pelos fiéis, para consolidar os postulados da religião. O núcleo inicial era composto por cinco grupos: Confederação Nacional Espírita Umbandista dos Cultos Afro-brasileiros; Congregação Espírita Umbandista do Brasil; União Espiritista de Umbanda do Brasil; Primado de Umbanda; e Federação Nacional das Sociedades Religiosas de Umbanda. Depois outras entidades se agregaram. Em 1982 já se haviam unido ao CONDU 41 federações e confederações do Brasil. "Estima-se em 300 mil o número de terreiros filiados a essas federações, que por sua vez associam cerca de 40 milhões de umbandistas", gabava-se o deputado Atila Nunes Filho em 1982. Mas pode haver aqui dois formidáveis exageros: que sejam realmente 300 mil os terreiros afiliados; e que cada terreiro tenha uma média de 130 membros. O Anuário Estatístico de 1984 dava apenas 678.714 espíritas afrobrasileiros.

Mas estes são os que já não querem ser católicos.
A verdade é que ninguém está em condições de informar com exatidão sobre o número dos umbandistas. E a razão é muito simples: a absoluta maioria dos adeptos e simpatizantes da umbanda continua afirmando sua identidade católica. Apenas os umbandistas declaradamente espiritistas, marcados por um kardecismo desvinculado da Igreja católica, negam sua condição católica. A grande massa popular adere a um umbandismo mais africano pouco kardequizado, com evidente fachada católica. Neles perdura a consciência de serem católicos, embora à maneira africana. O cordão umbilical que os liga à mãe-Igreja ainda não foi cortado. O caniço rachado não se quebrou e a mecha que ainda fumega não se apagou (cf. Mt 12,20). Entretanto, já estão presentes forças que tendem a consumar a ruptura fatal.
11 . Não é possível ensaiar um resumo da doutrina umbandista. Já vimos esta lamentação feita por um umbandista: "Cada terreiro procura fazer a umbanda a seu modo, e dentro do conceito que ele próprio imagina, de acordo com sua instrução, com sua capacidade de imaginação, com os seus conhecimentos".
No I Congresso do Espiritismo de Umbanda, em 1941, foi unanimemente aprovada a quinta conclusão, formulada nestes termos:
- "Sua filosofia consiste no reconhecimento do ser humano como partícula da divindade, dela emanada límpida e pura, e nela finalmente reintegrada ao fim do necessário ciclo evolutivo, no mesmo estado de limpidez e pureza, conquistado pelo seu próprio esforço e vontade".
Sente-se aí um eco da doutrina kardecista, mas o próprio AK jamais teria aprovado o panteísmo patente nestas palavras. Sem nenhuma formação séria e sistemática, muitas vezes sem saber falar e escrever corretamente o português, o babalaô, na necessidade, entretanto, de apresentar aos seus sequazes alguma doutrina, soletrou livros "espiritualistas", mastigou tudo aquilo como pôde, misturou, liquidificou e ofereceu lances deste tipo:
- "A vida é Deus em energia e força manifestadas. A morte é Deus colhendo as suas semeaduras. A reencarnação é Deus na seleção das almas que precisam depurar-se. Natureza é matéria de Deus, é Deus-mãe" (AB'D' Ruanda, Lex umbanda. Catecismo. Rio, 1954, p. 48). 
- "Como no cristianismo, no bramanismo e noutras religiões, o espírito supremo, o absoluto, é trino, e em umbanda os seus três aspectos têm as seguintes denominações: Obatalá, corresponde ao Pai, no cristianismo, ao brama no hinduísmo, a Osíris, na trindade dos antigos egípcios; Oxalá, correspondendo ao Filho, no cristianismo, a Visnu no hinduísmo, a Hórus, na trindade egípcia; o Filho é Cristo no catolicismo e Jesus no kardecismo; lfá, corresponde ao Espírito Santo no catolicismo, Isis, na trindade dos egípcios, Maya no hinduísmo" (Catecismo de umbanda, Rio, 1954, sem indicação de autor).
    A antropologia dos terreiros se caracteriza pela filosofia da pluralidade das existências. A quarta conclusão unanimemente aprovada pelo I Congresso do Espiritismo de Umbanda soa
assim:
- "Sua doutrina baseia-se no princípio da reencarnação do espírito em vidas sucessivas na terra, como etapas necessárias à sua evolução planetária". 
É a mesma doutrina de AK. Até mesmo a Confederação Espírita Umbandista, que quer restaurar a antiga doutrina africana, em uma de suas obras "oficiais", declara: "O umbandista acredita na lei das reencarnações, na lei da evolução das almas, aceita a revelação de Jesus Cristo" (Doutrina e ritual de umbanda, Rio, 1951, p. 68); mas os mesmos autores, em Fundamentos da um banda, Rio, 1956, p. 58, esclarecem: "A umbanda não tem nada com a doutrina de Kardec". De sua parte, Emanuel Zespo, "o codificador de umbanda", ensina que "o espiritismo de umbanda aceita integralmente a revelação kardeciana" (O que é a umbanda, Rio, 1949, p. 47). E na p. 51 escreve:
- "Dos diversos tipos de espiritualistas existentes no mundo, o umbandista é dos que praticam a mediunidade espiritualista, e, como os espíritas, o umbandista comunica-se com os desencarnados, aceita a lei das reencarnações, aceita a doutrina do Evangelho, e procura praticar a caridade como a entendeu Kardec. A umbanda aceitou a comunicação com os desencarnados, a terceira revelação kardeciana, absorvendo do espiritismo todos os seus ensinamentos". 
    No meio de tantas idéias confusas e afirmações contraditórias, há, no entanto, este princípio comum a todos: a evocação dos falecidos para confabular com eles. E neste ponto, apenas neste, se identificam com AK e são espíritas. E para qualificar-se como espíritas podem os umbandistas apoiar-se em não poucas palavras de AK e que já vimos. 
12. Este é o confuso universo espiritista. A verdade é que, depois de AK, não apareceu outro, igual a ele na clareza da exposição, na elegância do estilo e na capacidade de raciocínio. Existem ainda outras organizações não diretamente espiritistas, mas que em suas práticas e doutrina muito se aproximam do espiritismo. Lembro algumas: 
- O "Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento": foi fundado em 27-6-1909, pelo Sr. Antônio Olívio Rodrigues. Tem sua sede central em São Paulo e possui mais de 1.500 centros (eles dizem "tattwas") espalhados por todo o Brasil, com quase meio milhão de sócios inscritos. 
Estão também firmemente centrados na idéia da reencarnação.
- A "Teosofia", fundada por Helena Petrowna Hahn, casada com o general russo Blavatsky, do qual se separou um ano depois, mas conservou o nome. Esteve em. Paris, onde se transformou em médium espírita e entrou no grupo de Allan Kardec, herdando sua doutrina reencarnacionista. No Brasil a teosofia está dividida.
- Os "Rosacruzes". Temos no Brasil várias organizações diferentes de "rosacruz". A mais difundida é a AMORC: Antiga e Mística Ordem Rosae Crucis, fundada em 1915, em Nova Iorque, por Harve Spencer Lewis (1883-1939). Também adota a doutrina da reencarnação. 
   Temos ainda a "Fraternidade Rosacruz", fundada por Max Heindel, nos Estados Unidos, que se havia separado de Rudolf Steiner, criador da "Antroposofia".
- E temos mais: a Ordem dos Iluminados, a Ordem Esotérica do Mentalismo, a Ação Cristã Evolucionista, o Energismo, o Neopitagorismo, a Logosofia, o Ioguismo, várias organizações de Ocultismo, Astrologia e outras artes divinatórias. . .
Entendo agora bem estas palavras do Apóstolo na segunda carta a Timóteo, capítulo 4, versículos 3-4: "Virá um tempo em que alguns não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, segundo os seus próprios desejos, como que sentindo comichão nos ouvidos, se rodearão de mestres. Desviarão os seus ouvidos da verdade, orientando-se para as fábulas". Ou estas de Jesus Cristo: "Eu vim em nome de meu Pai, mas não me acolheis; se alguém viesse em seu próprio nome, vós o receberíeis. Como podereis crer, vós que recebeis glória uns dos outros, mas não procurais a glória do Deus único?" (10 5,43-44).

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Fonte:
Espiritismo – orientação para católicos

Frei Boaventura Kloppenburg
7ª ed. 2002

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