A DOUTRINA ESPÍRITA


Pouco antes de sua morte, em março de 1869, vivamente preocupado por um "formulário de profissão de fé, circunstanciado e claramente expresso", Allan Kardec iniciou a elaboração de um texto com o título: "Credo espírita". Chegou a escrever o preâmbulo, que termina assim:
"São inúmeras as questões que ele (o espiritismo) envolve, as quais, no entanto, podem resumir se nos pontos seguintes que, considerados verdades inconcussas, formam o programa das crenças espíritas". Deixou redigido ainda este título: "Princípios fundamentais da doutrina espírita, reconhecidos como verdades inconcussas". E então morreu.

Mas a doutrina espírita existe: está nas obras de Allan Kardec. Segundo as determinações do Conselho Federativo Nacional da Federação Espírita Brasileira (1985), cada estatuto de uma instituição espírita deve consignar esta finalidade: "O estudo, prática e divulgação da doutrina espírita como religião, filosofia e ciência, nos moldes da codificação de Allan Kardec". E propõe um modelo de estatuto, no qual se etermina assim a primeira finalidade: "Estudar o espiritismo e propagar ilimitadamente seus ensinamentos doutrinários, por todos os meios que oferece a palavra escrita, falada e exemplificada de conformidade dos métodos estabelecidos na codificação de Allan Kardec e nas obras subsidiárias".

Na introdução a O livro dos espíritos, o mesmo Allan Kardec ensaiou um resumo dos pontos principais da doutrina espírita. Eis as unidades mais expressivas deste resumo:

  1.  "Deus é eterno, imutável, imaterial, único, onipotente, soberanamente justo e bom. Criou o universo, que abrange todos os seres animados e inanimados, materiais e imateriais. Os seres materiais constituem o mundo visível ou corpóreo, e os seres imateriais, o mundo invisível ou espírita, isto é, dos espíritos. O mundo espírita é o mundo normal, primitivo, eterno, preexistente e sobrevivente a tudo. O mundo corporal é secundário; poderia deixar de existir, ou não ter jamais existido, sem que por isso alterasse a essência do mundo espírita".
  2. "Os espíritos revestem temporariamente um invólucro material perecível, cuja destruição pela morte lhes restitui a liberdade. Entre as diferentes espécies de seres corpóreos, Deus escolheu a espécie humana para a encarnação dos espíritos que chegaram a certo grau de desenvolvimento, dando-lhes superioridade moral e intelectual sobre as outras. A alma é um espírito encarnado, sendo o corpo apenas o seu envoltório".
  3. "Há no homem três coisas: 1ª) o corpo ou ser material análogo aos animais e animado pelo mesmo princípio vital; 2ª) a alma ou ser imaterial, espírito encarnado no corpo; 3ª) o laço que prende a alma ao corpo, princípio intermediário entre a matéria e o espírito. Tem assim o homem duas naturezas: pelo corpo, participa da natureza dos animais, cujos instintos lhe são comuns; pela alma, participa da natureza dos espíritos. O laço ou perispírito, que prende ao corpo o espírito, é uma espécie de envoltório semi-material. A morte é a destruição do invólucro mais grosseiro. O espírito conserva o segundo, que lhe constitui um corpo etéreo, invisível para nós no estado normal, porém que pode tornar-se acidentalmente visível e mesmo tangível, como sucede no fenômeno das aparições. O espírito não é, pois, um ser abstrato, indefinido, só possível de conceber-se pelo pensamento. É um ser real, circunscrito, que, em certos casos, se torna apreciável pela vista, pelo ouvido e pelo tato".
  4. "Os espíritos pertencem a diferentes classes e não são iguais nem em poder, nem em inteligência, nem em saber, nem em moralidade. Os da primeira ordem são os espíritos superiores, que se distinguem dos outros pela sua perfeição, seus conhecimentos, sua proximidade de Deus, pela pureza de seus sentimentos e por seu amor do bem: são os anjos ou puros espíritos. Os das outras classes se acham cada vez mais distanciados dessa perfeição, mostrando-se os das categorias inferiores, na sua maioria, eivados das nossas paixões: o ódio, a inveja, o ciúme, o orgulho etc. Comprazem-Se no mal. Há também, entre os inferiores, os que não são nem muito bons nem muito maus, antes perturbadores e enredadores, do que perversos. A malícia e as inconseqüências parecem ser o que neles predomina. São espíritos estúrdios ou levianos".
  5. "Os espíritos não ocupam perpetuamente a mesma categoria. Todos se melhoram passando pelos diferentes graus da hierarquia espírita. Esta melhora se efetua por meio da encarnação, que é imposta a uns como expiação, a outros como missão. A vida material é uma prova que lhes cumpre sofrer repetidamente, até que hajam atingido a absoluta perfeição moral. Deixando o corpo, a alma volve ao mundo dos espíritos, donde saíra, para passar por nova existência material, após um lapso de tempo mais ou menos longo, durante o qual permanece em estado de espírito errante".
  6. "Tendo o espírito que passar por muitas encarnações, segue-se que todos nós temos tido muitas existências e que teremos ainda outras, mais ou menos aperfeiçoadas, quer na Terra, quer em outros mundos. A encarnação dos espíritos se dá sempre na espécie humana; seria erro acreditar-se que a. alma ou espírito possa encarnar no corpo de um animal. As diferentes existências corpóreas do espírito são sempre progressivas e nunca regressivas; mas a rapidez do seu progresso depende dos esforços que faça para chegar à perfeição".
  7. "Os espíritos encarnados habitam os diferentes globos do universo. Os não-encarnados ou errantes não ocupam uma região determinada e circunscrita; estão por toda parte no espaço e ao nosso lado, vendo-nos e acotovelando-nos de contínuo. É toda uma população invisível, a mover-se em tomo de nós. Os espíritos exercem incessante ação sobre o mundo moral e mesmo sobre o mundo físico. Atuam sobre a matéria e sobre o pensamento e constituem uma das potências da natureza, causa eficiente de uma multidão de fenômenos até então inexplicáveis ou mal explicados e que não encontram explicação racional senão no espiritismo".
  8. "As relações dos espíritos com os homens são constantes. Os bons espíritos nos atraem para o bem, nos sustentam nas provas da vida e nos ajudam a suportá-las com coragem e resignação. Os maus nos impelem para o mal: é-lhes um gozo ver-nos sucumbir e assemelharmos a eles. As comunicações dos espíritos são ocultas ou ostensivas. As ocultas se verificam pela influência boa ou má que exercem sobre nós, à nossa revelia. Cabe ao nosso juízo discernir as boas das más inspirações. As comunicações ostensivas se dão por meio da escrita, da palavra ou de outras manifestações materiais, quase sempre pelos médiuns que lhes servem de instrumentos".
  9. "Os espíritos se manifestam espontaneamente ou mediante evocação. Podem evocar-se todos os espíritos: os que animaram homens obscuros, como os das personagens mais ilustres, seja qual for a época em que tenham vivido; os de nossos parentes, amigos ou inimigos, e obter-se deles, por comunicações escritas ou verbais, conselhos, informações sobre a situação em que se encontram no além, sobre o que pensam a nosso respeito, assim como as revelações que lhes sejam permitidas fazer-nos".
  10. "Os espíritos são atraídos na razão da simpatia que lhes inspire a natureza moral do meio que os evoca. Os espíritos superiores se comprazem nas reuniões sérias, onde predominam o amor do bem e o desejo sincero, por parte dos que as compõem, de se instruírem e melhorarem. A presença deles afasta os espíritos inferiores que, inversamente, encontram livre acesso e podem obrar com toda a liberdade entre pessoas frívolas ou impelidas unicamente pela curiosidade e onde quer que existam maus instintos. Longe de se obterem bons conselhos, ou informações úteis, deles só se devem esperar futilidades, mentiras, gracejos de mau gosto, ou mistificações, pois que muitas vezes tomam nomes venerados, a fim de melhor induzirem ao erro".
  11. "A moral dos espíritos superiores se resume, como a do Cristo, nesta máxima do Evangelho: fazer aos outros o que quereríamos que os outros nos fizessem, isto é, fazer o bem e não o mal. Neste princípio encontra o homem uma regra universal de proceder, mesmo para as suas menores ações. Ensinam-nos (...) não haver faltas irremissíveis, que a expiação não possa apagar. Meio de consegui-lo encontra o homem nas diferentes existências que lhe permitem avançar, conformemente aos seus desejos e esforços, na senda do progresso, para a perfeição, que é o seu destino final". Este resumo, compendiado pelo próprio AK, de fato nos apresenta uma concepção centrada em Deus e, sobretudo nos espíritos. Tanta é a importância conferida aos espíritos que, com razão, se pode qualificar o conjunto desta doutrina como "espiritismo". Assim, com efeito, o entendia seu codificador, já na primeira alínea da introdução a O livro dos espíritos:

- "Para se designarem coisas novas são precisos termos novos. Assim o exige a clareza da linguagem para evitar a confusão inerente à variedade de sentidos das mesmas palavras. Os vocábulos espiritual, espiritualista, espiritualismo têm acepção bem definida. Dar-lhes outra, para aplicá-los à doutrina dos espíritas, fora multiplicar as causas já numerosas de anfibologia. 
Com efeito, o espiritualismo é o oposto do materialismo. Quem quer que acredite haver em si alguma coisa mais do que matéria é espiritualista. Não se segue daí, porém, que creia na existência dos espíritos ou em suas comunicações com o mundo visível. Em vez da palavra espiritual, espiritualismo, empregamos, para indicar a crença a que vimos de referir-nos, os termos espírita e espiritismo, cuja forma lembra a origem e o sentido radical e que, por isso mesmo, apresentam a vantagem de ser perfeitamente inteligíveis, deixando ao vocábulo espiritualismo a acepção que lhe é própria. Diremos, pois, que a doutrina espírita ou o espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os espíritos ou seres do mundo  invisível. Os adeptos do espiritismo serão os espíritas, ou, se quiserem, os espiritistas”.

É importante esta precisão no uso das palavras e a fundamental diferença entre "espiritualismo" e "espiritismo". No vocabulário espírita, elaborado por AK e publicado no final de O livro dos médiuns, o codificador repete os mesmos conceitos:
- "Espírita: o que tem relação com o espiritismo; adepto do espiritismo; aquele que crê nas manifestações dos espíritos".
- "Espiritismo: doutrina fundada sobre a crença na existência dos espíritos e em suas manifestações".
- "Espiritualista: o que se refere ao espiritualismo; adepto do espiritualismo. O espiritualista aquele que acredita que em nós nem tudo é matéria, o que de modo algum implica a crença nas manifestações dos espíritos. Todo espírita é necessariamente espiritualista, mas pode-se ser espiritualista sem se ser espírita".
Em que consiste, pois, a diferença? O "espírita" admite não só a existência de espíritos (nisso coincide com o "espiritualista"), mas acredita também na sua manifestação. 

Entretanto, aqui se faz necessário ulterior esclarecimento: também os cristãos, que evidentemente são espiritualistas, aceitam a manifestação dos espíritos, mas nem por isso gastariam de ser qualificados coma "espíritas". Há, pois, ambigüidade na expressão "manifestação dos espíritos". O próprio AK costuma insistir na distinção entre manifestações espontâneas e manifestações "provocadas mediante a evocação" (veja-se, por exemplo, no n. 9 do elenco de doutrinas acima reproduzido). Os cristãos admitem sem dificuldade as manifestações espontâneas, mas se negam a aceitar as provocadas mediante a evocação, como veremos nas páginas 50ss. Por conseguinte, o espiritismo se especifica, caracteriza e define por sua aceitação das manifestações provocadas (evocação) dos espíritos. Espírita é todo espiritualista que admite a prática da evocação dos falecidos.

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Fonte: Espiritismo – orientação para católicos
Frei Boaventura Kloppenburg
7ª ed. 2002

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