A CREDIBILIDADE DA CODIFICAÇÃO

1. O codificador
No primeiro capítulo já vimos a descrição que o próprio AK fez de sua iniciação no espiritismo no ambiente mesmeriano de Paris, a partir de 1854. "Foi nessas reuniões que comecei os meus estudos sérios de espiritismo, menos, ainda, por meio de revelações, do que de observações. Apliquei a essa nova ciência, como o fizera até então, o método experimental; nunca elaborei teorias preconcebidas; observava cuidadosamente, comparava, deduzia conseqüências; dos efeitos procurava remontar às causas, por dedução e pelo encadeamento lógico dos fatos, não admitindo por válida uma explicação, senão quando resolvia todas as dificuldades da questão. Foi assim que procedi sempre em meus trabalhos, desde a idade de 15 a 16 anos. Compreendi, antes de tudo, a gravidade da exploração que ia empreender; percebi,
naqueles fenômenos, a chave do problema tão obscuro e tão controvertido do passado e do futuro da humanidade, a solução que eu procurara em toda a minha vida. Era, em suma, toda uma revolução nas idéias e nas crenças; fazia-se mister, portanto, andar com a maior circunspecção e não levianamente; ser positivista e não idealista, para não me deixar iludir" (VII, 240s.).
E logo: "Um dos primeiros resultados que colhi das minhas observações foi que os espíritos, nada mais sendo do que as almas dos homens, não possuíam nem a plena sabedoria, nem a ciência integral; que o saber de que dispunham se circunscrevia ao grau, que haviam alcançado, de adiantamento, e que a opinião deles só tinha o valor de uma opinião pessoal. Reconhecida desde o princípio, esta verdade me preservou do grave escolho de crer na infalibilidade dos espíritos e me impediu de formular teorias prematuras, tendo por base o que fora dito por um ou alguns deles...
Conduzi-me, pois, com os espíritos, como houvera feito com homens. Para mim eles foram, do menor ao maior, meios de me informar e não reveladores predestinados. Tais as disposições com que empreendi meus estudos e neles prossegui sempre. Observar, comparar e julgar, essa a regra que constantemente segui" (VII, 241).
Recebido o material dos vários centros, "era necessário grupar os fatos espalhados, para se lhes apreender a correlação, reunir os documentos diversos, as instruções dadas pelos espíritos sobre todos os pontos e sobre todos os assuntos, para as comparar, analisar, estudar-lhes as analogias e as diferenças. Vindo as comunicações de espíritos de todas as ordens, mais ou menos esclarecidos, era preciso apreciar o grau de confiança que a razão permitia conceder-lhes, distinguir as idéias sistemáticas individuais ou isoladas das que tinham a sanção do ensino geral
dos espíritos, as utopias das idéias práticas, afastar as que eram notoriamente desmentidas pelos dados da ciência positiva e da lógica, utilizar igualmente os erros, as informações fornecidas pelos espíritos, mesmo os da mais baixa categoria, para conhecimento do estado do mundo invisível e formar com isso um todo homogêneo" (VI, 38).
Nisso, portanto, consistiu a contribuição pessoal do mestre Kardec: "O nosso papel pessoal...é o de um observador atento, que estuda os fatos para lhes descobrir a causa e tirar-lhes as conseqüências. Confrontamos todos os que têm sido possível reunir, comparamos e comentamos as instruções dadas pelos espíritos em todos os pontos do globo e depois coordenamos metodicamente o conjunto; em suma, estudamos e demos ao público o fruto das nossas indagações" CVI, 34).
É, pois, incontestável que AK se apresenta como um homem sério, estudioso, científico, interessado em resolver os problemas mais fundamentais da humanidade. Todavia, mesmo a confessada seriedade e circunspeção de uma pessoa, por melhor que seja a sua boa vontade, ainda não é garantia suficiente de sua credibilidade. Pois não nos interessam as idéias pessoais de AK - o que importa é a novidade e superioridade das novas revelações do além, que, como se afirma entre os espíritas, devem aperfeiçoar a revelação cristã. Ainda que déssemos por inteiramente segura a probidade e seriedade de AK, não teríamos com isso garantida a credibilidade da doutrina por ele proposta, já que jamais ele nos afiançou sua infalibilidade:
"Nunca tivemos a pretensão de nos julgarmos profeta ou messias, nem, ainda menos, de nos apresentarmos como tal" (VI, 35). Declara ainda que não atribui aos seus trabalhos valor maior do que o de uma "obra filosófica, deduzida da observação e da experiência, sem nunca nos considerarmos chefe da doutrina, nem procurarmos impor as nossas idéias a quem quer que seja" (VI, 34).
Entretanto, em suas Obras póstumas, AK fala diversas vezes da missão especial de que fora investido pelos espíritos. Narra ele que "numa dessas sessões, muito íntima, a que apenas assistiram sete ou oito pessoas, falavam estas de diferentes coisas relativas aos acontecimentos capazes de acarretar uma transformação social, quando o médium, tomando da cesta, espontaneamente escreveu isto: "Quando o bordão soar, abandoná-lo-eis; apenas aliviareis o vosso semelhante; individualmente o magnetizareis, a fim de curá-lo. Depois, cada um no posto que lhe foi preparado, porque de tudo se fará mister, pois que tudo será destruído, ao menos temporariamente. Deixará de haver religião e uma se fará necessária, mas verdadeira, grande, bela e digna do Criador... Seus primeiros alicerces já foram colocados. .. Quanto a ti, Rivail, a
tua missão é aí (livre, a cesta se voltou rapidamente para o meu lado como o teria feito uma pessoa que me apontasse com o dedo). A ti M. a espada que não fere, porém mata; contra tudo o que é, serás tu o primeiro a vir. Ele, Rivail, virá em segundo lugar: é o obreiro que reconstrói o que foi demolido". AK observa em seguida: "Foi essa a primeira revelação positiva da minha missão e confesso que, quando vi a cesta voltar-se bruscamente para o meu lado e designar-me nominativamente, não me pude forrar a certa emoção" (VII, 248s.) . Também na p. 252 toma a falar da sua missão especial e na p. 253 o espírito lhe diz: "A missão dos reformadores é prenhe de escolhos e perigos. Previno-te de que é rude a tua, porquanto se trata de abalar e transformar o mundo inteiro". E depois, nas pp. 257ss., fala da tiara espiritual com que foi distinguido e o espírito lhe declara que ele é o "chefe da doutrina", que seus escritos "fazem lei" e que recebeu espontaneamente os títulos de "sumo sacerdote, de pontífice, mesmo de papa", "em suma, o
senhor conquistou, sem a buscar, uma posição moral que ninguém lhe pode tirar, dado que, sejam quais forem os trabalhos que se elaborarem depois dos seus, ou concomitantemente com eles, o senhor será sempre o proclamado fundador da doutrina. Logo, em realidade, está com a tiara espiritual, isto é, com a supremacia moral. Reconheça, portanto, que eu disse a verdade" (VII, 260). Mais adiante, na p. 270, o espírito revela que ele, AK, deverá reencamar, "para concluir a tua missão" e AK faz ingenuamente o seguinte cálculo: "Calculando aproximadamente a duração dos trabalhos que ainda tenho que fazer e levando em conta o tempo da minha ausência e os anos da infância e da juventude, até à idade em que um homem pode desempenhar no mundo um papel, a minha volta deverá ser forçosamente no fim deste
século ou no princípio do outro"...
Já que a terceira revelação (o espiritismo) veio "numa época de emancipação e madureza intelectual, em que a inteligência, já desenvolvida, não se resigna a representar papel passivo, em que o homem nada aceita às cegas, mas quer ver aonde o conduzem, quer saber o porquê e o como de cada coisa" (VI, 36) - por isso, "emancipados, maduros e desenvolvidos que somos", vamos também nós ver aonde nos levaram as observações do mestre Kardec, por que e como ele chegou a estabelecer os vários pontos da doutrina espírita.
AK assinala três critérios principais para distinguir os espíritos bons dos maus, as comunicações verdadeiras e sérias das falsas e ridículas:
1) o critério da linguagem digna e nobre;
2) o critério da concordância dos espíritos;
3) o critério da lógica e do bom senso. Examinemos agora o valor intrínseco desses três critérios fundamentais usados pelo mestre espírita.

2. Os critérios de seleção adotados por AK
A - O critério da linguagem digna e nobre Exposição: já nas primeiras páginas de seu livro principal, AK formula este critério, que é depois repetido muitas vezes nas outras obras: "Distinguir os bons dos maus espíritos é extremamente fácil", declara ele; e eis como: "Os espíritos superiores usam constantemente de
linguagem digna, nobre, repassada da mais alta moralidade, escoimada de qualquer paixão inferior; a mais pura sabedoria lhes transparece dos conselhos, que objetivam o nosso melhoramento e o bem da humanidade. A dos espíritos inferiores, ao contrário, é inconseqüente, amiúde, trivial e até grosseira" (I, 24). De modo semelhante se exprime no Livro dos médiuns, onde não se cansa de dizer que os espíritos devem ser julgados "pela linguagem de que usam"; e declara que "pode estabelecer-se como regra invariável e sem exceção que a linguagem dos espíritos está sempre em relação com o grau de elevação a que já tenham chegado" (III, 274), pois, garante-nos ele, "a bondade e a afabilidade são atributos essenciais dos espíritos
depurados" (III, 275).
Portanto, segundo este critério, tudo está ligado à nobreza e dignidade de expressão, tudo depende de respirar a mais elevada moral e santidade ou não. Logo que constatamos que alguma mensagem recebida por um médium é redigida em forma nobre, digna e elevada - ainda que não seja mui conforme com as escrituras sagradas -, teríamos a garantia de estarmos diante de uma nova revelação digna de crédito.
Crítica: aqui poderia relembrar tudo quanto vimos acima sobre os "falsários no mundo dos espíritos" - pois, se os espíritos maus, "que se comprazem em fazer o mal", que nos querem "induzir maldosamente no erro" e que "se mascaram de todas as maneiras para melhor enganar", se eles, cuja astúcia "ultrapassa às vezes tudo o que se possa imaginar", são "capazes de todos os ardis", "identificando-se com os hábitos daqueles a. quem falam", "adotando os nomes mais apropriados a causar forte impressão" etc., conforme nos adverte o próprio AK - como não poderão eles, também, para melhor se impor, usar de um modo de falar nobre, digno etc., ainda mais se chegam a saber que será por este critério que nos havemos de orientar? Ouvimos
freqüentemente falar de ladrões e assassinos, que se fingem os maiores amigos da vítima designada, falam constantemente com nobreza e dignidade, mostrando uma dedicação que não parece ter limites e, no entanto, à hora oportuna – uma punhalada traiçoeira ou um tiro pelas costas termina a farsa bem representada.
Ademais, vimos que os espíritos pseudo-sábios "dispõem de conhecimentos bastante amplos, porém crêem saber mais do que realmente sabem. Tendo realizado alguns progressos sob diversos pontos de vista, a linguagem deles aparenta um cunho de seriedade, de natureza a iludir com respeito às suas capacidades e luzes" (I, 88). Aqui é evidente que o indicado critério nada vale. Aliás, dispomos ainda de muitos textos kardecianos que nos mostram existir comunicações sérias e, no entanto, falsas: "No tocante a comunicações sérias, cumpre distinguir as verdadeiras das falsas, o que nem sempre é fácil, porquanto exatamente à sombra da elevação da linguagem é que certos espíritos presunçosos, ou pseudo-sábios, procuram conseguir a prevalência das mais falsas idéias e dos mais absurdos sistemas. E, para melhor acreditados se
fazerem e maior importância ostentarem, não escrupulizam de se adornarem com os mais respeitáveis nomes e até com os mais venerados. Esse é um dos maiores escolhos da ciência prática..." (IV, 149s.). Quer dizer: há comunicações "sérias", com "elevação de linguagem", adornadas "com os mais respeitáveis nomes" - e que, não obstante, propugnam "as mais falsas idéias" e "os mais obscuros sistemas". Como identificar tais mensagens? O critério da linguagem, evidentemente, no caso nada vale. E outra vez diz nosso mestre espírita: "Qualificando de instrutivas as comunicações, supomo-las verdadeiras, pois o que não for verdadeiro não pode ser instrutivo, ainda que dito na mais imponente linguagem" (III, 150). E isso equivale a negar o valor do critério da "mais imponente linguagem". Lembremo-nos ainda que existem espíritos
sérios e bons que nos falam com toda a seriedade e boa fé, mas - "há muita coisa que eles ignoram e sobre que podem enganar-se de boa fé" (III, 149).
Ilustremos a aplicação do suposto critério com um exemplo do próprio AK: no final de O livro dos espíritos (p. 460), AK declara que há espíritos "cuja superioridade se revela na linguagem de que usam" e que "responderam a pessoas muito sérias", concedendo a existência do purgatório e do inferno segundo a doutrina católica. Ora, não obstante a seriedade e dignidade no modo de falar de tais espíritos, AK e todos os espíritas rejeitam estas mensagens como falsas e mentirosas.
Assim é evidente que o critério da linguagem não só não tem valor, mas nem o próprio AK se orienta por ele.
B - O critério da concordância dos espíritos
Exposição: Darei primeiro a palavra ao mestre Kardec: "Sem embargo da parte que toca à atividade humana na elaboração desta doutrina (espírita), a iniciativa da obra pertence aos espíritos, porém não a constitui a opinião pessoal de nenhum deles. Ela é, e não pode deixar de ser, a resultante do ensino coletivo e concorde por eles dado. Somente sob tal condição se lhe pode chamar doutrina dos espíritos. Doutra forma, não seria mais do que a doutrina de um espírito e apenas teria o valor de uma opinião pessoal" (VI, 10). E logo: "Generalidade e concordância no ensino, esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do
controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o espiritismo assumir a responsabilidade. Essa coletividade concordante da opinião dos espíritos, passada, ao demais, pelo critério da lógica (note-se que aqui já transparece outro critério!), é que constitui a força da doutrina espírita e lhe assegura a perpetuidade" (VI, 11). Também na introdução ao Evangelho segundo o espiritismo o mestre Kardec repisa no valor decisivo deste critério: a doutrina espírita, explica ele, vale, "porque recebeu a sanção da concordância"; "tomadas insuladamente, elas (as revelações), para nós, nenhum valor teriam; somente a coincidência lhes imprime gravidade" (IV, 21). "Essa verificação universal constitui uma garantia para a unidade futura do espiritismo e anulará as teorias contraditórias. Aí é que, no porvir, se encontrará o critério da verdade" (IV, 21).
Assim propõe e explica AK o critério da concordância dos espíritos. Seria, portanto, um critério relativamente fácil e aplicável: comparar as "milhares" de comunicações recebidas de "milhares de centros" - e tudo aquilo em que todos os espíritos estiverem concordes - seria admitido como verdadeiro; o mais seria rejeitado como falso ou, ao menos, como insuficientemente comprovado. E pelo seu modo de falar, AK quer, realmente, dar aos seus leitores a impressão de que tudo o que ele propõe em seus livros definitivos passou incólume por este critério, "com exceção, todavia, de algumas teorias ainda hipotéticas, que tivemos o cuidado de indicar como tais e que devem ser consideradas simples opiniões pessoais" (VI,
11s.), todo o mais é conforme "com o ensino geral dos espíritos" (VI, 11).
Crítica: a primeira pergunta que me ocorreria fazer seria: concordância geral de que espíritos? De todos? Também dos maus, travessos e galhofeiros, que são numerosos? Ou só dos bons, puros e sábios? E então voltaríamos à mesma questão de antes: como saber se um espírito é de fato superior, bom e puro? Só pelo modo de falar digno e repassado de moralidade? Pois se, como vimos, o espírito não apresenta carteira de identidade e, ademais, "agasta-o toda questão que tenha por fim pô-lo à prova" (III, 271) e se também os espíritos bons e superiores se apresentam sob nomes falsos (III, 270). . .
Mas apliquemos também aqui o princípio de criticar AK com AK. Eis aí outras informações que ele nos dá sobre a codificação da doutrina espírita: "Além disso, convém notar que em parte alguma o ensino espírita foi dado integralmente; ele diz respeito a tão grande número de observações, assuntos tão diferentes, exigindo conhecimentos e aptidões mediúnicas especiais, que impossível era acharem-se reunidas num mesmo ponto todas as condições necessárias.
Tendo o ensino que ser coletivo e não individual, os espíritos dividiram o trabalho, disseminando os assuntos de estudo e observação como, em algumas fábricas, a confecção de cada parte de um mesmo objeto é repartida por diversos operários" (VI, 38). E continua na preciosa informação: "A revelação faz-se assim parcialmente, em diversos lugares e por uma multidão de intermediários". E depois: "Cada centro encontra nos outros centros o complemento do que obtém, e foi o conjunto, a coordenação de todos os ensinos parciais que constituíram a doutrina espírita" (VI, 38).
Mas isso já é coisa bem diferente! Quer dizer que houve colaboração de muitos espíritos, mas não consentimento unânime, coletivo, de todos os espíritos, em todas as partes da doutrina espírita: cada espírito contribuiu com alguma comunicação "parcial"; os espíritos "dividiram o trabalho", como nas fábricas... e "foi o conjunto, a coordenação de todos os ensinos parciais que constituíram a doutrina espírita".
E temos mais: falando de sua obra básica, O livro dos espíritos, AK escreve: "Mais de dez médiuns prestaram concurso a esse trabalho" (VII, 243). E ele continua na mesma página: "Da comparação e da fusão de todas as respostas, coordenadas, classificadas e muitas vezes remodeladas no silêncio da meditação", nasceu o dito livro. Observemos: muitas vezes remodeladas no silêncio da meditação! Mas - "remodeladas" por quem? Com que competência?
Com que autoridade e. autorização? Se do além nos vem uma revelação, destinada a "completar, explicar e desenvolver" a revelação trazida por Cristo (cf. VI, 26), então fazemos questão de ter as novas "revelações" assim como elas vieram e não assim como elas foram "muitas vezes remodeladas no silêncio da meditação" por quem quer que seja, tão falível como qualquer um de nós.
E agora, para ilustrar, um exemplo de aplicação do critério da concordância, feita pelo mesmo AK. É sabido que um dos princípios fundamentais de toda a doutrina espírita codificada por AK e propagada aqui no Brasil é o princípio da reencarnação. Pode-se dizer que ao menos este princípio básico passou incólume pelo critério da concordância? Abro o Livro dos médiuns, p. 338, e leio o seguinte: "De todas as contradições que se notam nas comunicações dos espíritos, uma das mais frisantes é a que diz respeito à reencarnação". E logo revela que "nem todos os espíritos a ensinam". Também em O livro dos espíritos (n. 222, p. 139) sabe que os espíritos "não parecem todos de acordo sobre esta questão" (da reencarnação). Por conseguinte, a reencarnação, peça central de todo o edifício espírita, não possui aquele imprescindível
"caráter essencial da doutrina espírita", que consiste na "generalidade e concordância no ensino" e nem é "a resultante do ensino coletivo e concorde dado pelos espíritos". Portanto, sempre segundo os postulados teóricos do codificador (cf. VI, 10 e 11), esta teoria "não pode ser considerada parte integrante da doutrina espírita", mas será apenas "uma simples opinião isolada, da qual não pode o espiritismo assumir a responsabilidade".
Mas nas obras de AK aparece exatamente o contrário. Por isso ó espírita Aksakof pôs em dúvida a seriedade científica e a própria lealdade e sinceridade de AK, quando escreveu: "Vê-se claramente que a propagação dessa doutrina (sobre a reencarnação), por Allan Kardec, foi assunto de sua maior predileção; a reencarnação não está em seus livros como tema de estudo, mas como dogma. Para sustentá-la recorreu sempre a médiuns escreventes, os quais, como é sabido, são facilmente influenciados por idéias preconcebidas, e o espírito as há engendrado em profusão; no entanto, através dos médiuns físicos, as comunicações são objetivas, e não se tem notícia de que alguma tenha sido favorável à reencarnação. Kardec prescindiu sempre desta classe de mediunidade, sob o pretexto de sua inferioridade moral. Os poucos médiuns físicos, franceses, que desenvolveram suas faculdades, apesar de Kardec, jamais foram por ele mencionados; ao contrário, permaneceram desconhecidos aos espíritas, Só porque em suas comunicações não sustentavam a doutrina da reencarnação" (cf. Introdução ao estudo da doutrina espírita, publicada pela FEB em 1946, pp. 144s., livro que a FEB já não edita mais).
Aliás, o codificador de fato não deu tão decisiva importância às mensagens espíritas. Em O livro dos espíritos, AK intercalou um capítulo próprio, dele mesmo, não recebido dos espíritos, sobre a reencarnação (cap. V, pp. 138-148), no qual faz considerações filosóficas pró e contra a pluralidade das existências. Pelo fim do capítulo escreve o seguinte: "Temos raciocinado, abstraindo, como dissemos, de qualquer ensinamento espírita, que, para certas pessoas carece de autoridade. Não é somente porque veio dos espíritos que nós e tantos outros nos fizemos adeptos da pluralidade das existências. S porque esta doutrina nos pareceu a mais lógica e porque só ela resolve questões até então insolúveis" (p. 147). AK, portanto, nos diz que é reencarnacionista não porque os espíritos revelaram, mas por motivos de ordem filosófica.
Estes e não o valor dos espíritos é que decidiram o codificador a aceitar a reencarnação I Isso é importantíssimo. O organizador da doutrina espírita continua ainda, para não deixar dúvidas a
respeito: "Ainda quando (a idéia da reencarnação) fosse da autoria de um simples mortal, tê-laíamos,
igualmente, adotado, e não houvéramos hesitado um segundo mais em renunciar às idéias que esposávamos. Em sendo demonstrado o erro, muito mais que perder do que ganhar tem o amor-próprio, com o se obstinar na sustentação de uma idéia falsa. Assim, também, tê-laíamos repelido, mesmo que provindo dos espíritos, se nos parecera contrário à razão, como repelimos muitas outra..”. Mesmo que provindo dos espíritos! O grifo é meu. Estas palavras mostram quanto valem para AK as comunicações dos "espíritos": exatamente nada. Revelassem eles a reencarnação ou ensinassem o contrário, o codificador, de qualquer jeito, seria reencarnacionista. Ele próprio o diz. Isso equivale a declarar a absoluta bancarrota do
espiritismo. Para que ainda comunicações dos espíritos? O melhor que poderão fazer é confirmar nossa opinião pessoal; se não concordarem conosco, repelimo-los. É o que nos ensina o exemplo de AK.
Poderia tomar a lembrar também o exemplo acima citado, em que vimos que há espíritos "cuja superioridade se revela na linguagem de que usam" e que disseram a "pessoas muito sérias" que o inferno existe mesmo - e, no entanto, para os espíritas a inexistência do inferno é outra verdade, absolutamente certa, tão certa como é certo que o planeta Júpiter tem apenas quatro luas...
Assim, pois, o critério da concordância, embora fosse, talvez, teoricamente aceitável ou pelo menos discutível, é praticamente inexistente. Por isso escreve também AK: "Não há outro critério, senão o bom senso, para se aquilata do valor dos espíritos" (III, 276), pois, declara ele, "o bom senso não poderá enganar" (III, 280). Vejamos, portanto, a viabilidade deste último critério.

C - O critério da lógica e do bom senso
Exposição: deixemos que primeiramente AK exponha o seu ponto de vista: "O primeiro exame comprobativo é, pois, sem contradita, o da razão, ao qual cumpre se submeta, sem exceção, tudo o que venha dos espíritos. Toda teoria em manifesta contradição com o bom senso, com uma lógica rigorosa e com os dados positivos já adquiridos, deve ser rejeitada, por mais respeitável que seja o nome que traga como assinatura" (IV, 19s.). "Não admitais, portanto - recomenda o espírito de 'Erasto' - senão o que seja, aos vossos olhos, de manifesta evidência.
Desde que uma opinião nova venha a ser expendida, por pouco que nos pareça duvidosa, fazei-a
passar pelo crisol da razão e da lógica e rejeitai desassombradamente o que a razão e o bom
senso reprovarem" (III, 242s.).
Os espíritos revelaram, mas deixaram ao homem "o cuidado de discutir e verificar e submeter tudo ao cadinho da razão" (VI, 37). "Os espíritos verdadeiramente superiores nos recomendam de contínuo que submetamos todas as comunicações ao crivo da razão e da mais rigorosa lógica" (III, 149). Por isso: "Rejeitar, sem hesitação, tudo o que peque contra a lógica e o bom senso...este meio é único, mas é infalível" (III, 275s.); "é preciso sondar-lhe o íntimo, analisar-lhe as palavras friamente, maduramente e sem prevenção. Qualquer ofensa à lógica, à razão e à ponderação não pode deixar dúvida sobre a sua procedência, seja qual for o nome com que se ostente o espírito" (III, 276s.); "toda heresia científica notória, todo princípio que choque o bom senso, aponta fraude" (III, 277); "jamais os bons espíritos aconselham senão o que seja perfeitamente racional" (III, 279). "Não pode haver mistérios absolutos" (IV, 295); para o
espiritismo "absolutamente não há mistérios, mas uma fé racional, que se baseia em fatos e que
deseja a luz" (VII, 201).
Poderia acumular semelhantes textos. Mas já está suficientemente claro o verdadeiro pensamento do mestre espírita: o bom senso (o que seria esse bom senso que "não poderá enganar"?), a razão e a lógica são o critério único e supremo da verdade. Com isso estamos em pleno e perfeito racionalismo. Na edição brasileira de 1897 do Evangelho segundo o espiritismo, encontramos à p. VI o grito racionalista: "Queremos livres pensadores!" E na p. X está a mais crassa formulação do princípio racionalista do século passado: "Para fundar a doutrina que deve servir de apoio aos espíritos de hoje, não é necessário, não é preciso milagres, é preciso, ao contrário, que a ciência com seu escalpelo possa sondar todos os dogmas, todas as
máximas, todas as manifestações; é preciso que a razão possa tudo analisar, tudo elucidar, antes
de nada aceitar".
Crítica: com isso poderia dar por encerrado o exame dos fundamentos da doutrina espírita:
tornou-se evidente que o fundamento único é a razão - e a razão de AK! Com efeito: para que tantas comunicações de espíritos - se é a nossa razão que deve decidir e "rejeitar desassombradamente o que a razão e o bom senso reprovarem"? Para que tanta consulta de médiuns - se somos nós mesmos que devemos "submeter tudo ao cadinho da razão" e "rejeitar, sem hesitação, tudo o que peque contra a lógica e o bom senso"? Para que buscar tantas revelações do além - se é "preciso que a razão possa tudo analisar, tudo elucidar, antes de nada aceitar"?
Entretanto, vejamos mais uma vez o que nos diz AK sobre o valor decisivo deste critério da lógica e do bom senso: "O homem - escreve ele -, cujas faculdades são restritas, não pode penetrar, nem abarcar o conjunto dos desígnios do Criador; aprecia as coisas do ponto de vista da sua personalidade, dos interesses factícios e convencionais que criou para si mesmo e que não se compreendem na ordem da natureza. Por isso é que, muitas vezes, se lhe afigura mal e injusto aquilo que consideraria justo e admirável, se lhe conhecesse a causa, o objetivo, o resultado definitivo. Pesquisando a razão de ser e a utilidade de cada coisa, verificará que tudo traz o sinete da sabedoria infinita e se dobrará a essa sabedoria, mesmo com relação ao que não lhe seja compreensível" (VI, 67). Portanto: há mistérios! Portanto: não é possível que a "razão possa tudo analisar, tudo elucidar, antes de nada aceitar"! Mas AK nos oferece outros textos
semelhantes: "Há muitas coisas que não compreendeis, porque tendes limitada a inteligência.
Isso, porém, não é razão para que as repilais" (I, 79) - como combinar este conselho com aquele outro que mandava não admitir "senão o que seja ao vossos olhos de manifesta evidência"?
Outra vez: "Deus pode revelar o que à ciência não é dado aprender" (I, 56). Ainda outra vez fala
do "orgulho dos homens, que julgam saber tudo e não admitem haver coisa alguma que lhes esteja acima do entendimento" (I, 105). E mais: "Dos efeitos que observamos, podemos remontar a algumas causas. Há, porém, um limite que não nos é possível transpor. Querer ir além é, simultaneamente, perder tempo e cair em erro" (VII, 31). Mas essas palavras provam que a razão, a lógica, a ciência e o bom senso não podem ser o critério único e último da verdade. E quero alegar mais esse grão de ouro, escrito também por AK: "Para julgar os espíritos, como para julgar os homens, é preciso, primeiro, que cada um saiba julgar-se a si mesmo. Muita gente há, infelizmente, que toma suas próprias opiniões pessoais como paradigma exclusivo do bom e do mau, do verdadeiro e do falso; tudo o que lhes contradiga a maneira de ver, a suas
idéias e ao sistema que conceberam, ou adotaram, lhes parece mau. A semelhante gente evidentemente falta a qualidade primacial para uma apreciação sã: a retidão do juízo. Disso, porém, nem suspeitam. É o defeito sobre que mais se iludem os homens" (III, 280). Não teria sido, também, o mestre Kardec vítima deste defeito? Pois quem nos garante sua infalibilidade em julgar e discernir as revelações? "O primeiro indício da falta de bom senso está em crer alguém infalível o seu juízo" (I, 44); "o homem que julga infalível a sua razão está bem perto do erro. Mesmo aqueles, cujas idéias são as mais falsas, se apóiam na sua própria razão e é por isso que rejeitam tudo o que lhes parece impossível" (I, 28). Mas então, por que AK rejeitou a
divindade de Cristo, a inspiração divina da Bíblia, o pecado original, a graça, a redenção, os sacramentos, o inferno e outras multas coisas tão claramente reveladas na Sagrada Escritura? Não foi unicamente porque lhe parecia impossível? Não foi simplesmente porque sua razão não era capaz de compreender? Cristo, por exemplo, fala umas vinte vezes sobre o inferno e diz claramente que é sem fim e AK mesmo concede que alguns bons espíritos revelaram com bons modos a mesma existência do inferno - e, no entanto, não o admite! Por quê? Simplesmente porque sua razão acha que não pode ser, que Deus seria injusto etc. É necessário repetir com AK: "Procuremos em tudo a justiça e a sabedoria de Deus e curvemo-nos diante do que ultrapasse o nosso entendimento" (VI, 78). AK condenou-se a si mesmo, quando escreveu: "Em
geral os homens apreciam a perfeição de Deus do ponto de vista humano; medindo-lhe a sabedoria pelo juízo que dela formam, pensam que Deus não poderia fazer coisa melhor do que eles próprios fariam" (VI, 77). E mais: "Os homens de saber e de espírito, no entender o mundo, formam geralmente tão alto conceito de si próprios e de sua superioridade, que, tomando a inteligência que possuem para medida da inteligência universal e julgando-se aptos a compreender tudo, não podem crer na possibilidade do que não compreendem. Consideram sem apelação as sentenças que proferem" (IV, 109).
Concluindo e resumindo os resultados deste capítulo, temos que a doutrina espírita não apresenta nenhuma garantia de credibilidade. E em primeiro lugar já é puramente hipotética a suposição de que as mensagens mediúnicas venham de espíritos do outro mundo - o que por si já seria um duvidoso fundamento. Temos em segundo lugar a quase insuperável dificuldade de encontrar um verdadeiro médium, digno de inteira confiança e que nos dê garantias absolutas de não recorrer, nem consciente, nem inconsciente mente, aos próprios conhecimentos do inconsciente ou subconsciente. E ainda que o encontrássemos, teríamos a terceira, e esta de fato insuperável, dificuldade de discernir os espíritos superiores dos inferiores, as mensagens verdadeiras das erradas. Pois os critérios indicados por AK levam a um extremo, puro e crasso
racionalismo.
Os espíritas têm sempre um superior sorriso de malícia para a "fé cega" dos católicos -mas o espírita crê muito mais do que o católico e crê com muitíssimo menos base. Bem  escreveu o Pe. Heredia: "Se se admite a hipótese espírita de que a comunicação com as almas dos mortos é possível por meio de médiuns, há muito pouco fundamento para qualquer coisa que se pareça com religião; se se nega a hipótese, então é que não há nenhum fundamento" (Espiritismo e bom senso, 1924, p. 193).


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Fonte:

Espiritismo – orientação para católicos
Frei Boaventura Kloppenburg

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