Há
pessoas que aplicam às almas do purgatório todas as indulgências que lucram;
outras pelo contrário, guardam-nas todas para si mesmas, e ninguém tem o
direito, certamente, de condenar este modo de proceder. Pois quem ousaria
contestar a quem quer que fosse uma liberdade que a Igreja lhe concede? Graças
a Deus, não tenho semelhante pretensão. Sem embargo, vou expor livremente o meu
modo de sentir a este respeito. Contudo, cingir-me-ei estritamente ao que dizem
sobre esta matéria os teólogos e os autores espirituais.
A
graça é um benefício tão grande, que devemos procurar aumentá-la por todos os
meios possíveis; e não há caminho mais curto para chegar a este fim, que
converter a satisfação em mérito: é o que faremos ganhando indulgências para as
almas do purgatório. Esta devoção acumular-nos-á grandes tesouros espirituais,
e ao mesmo tempo que será agradável a Deus tiraremos dela uma imensa utilidade
para nós mesmos. Examinemos alguns dos frutos que produz esta devoção, o que
nos tornará mais generosos para essas filhas de Deus, essas esposas do Espirito
Santo, que nós favoreceremos com nossas orações e boas obras, sem receio de que
o fruto destas seja perdido para nós. Realmente, tira-se um grande proveito não
reservando nenhuma parte das próprias obras de satisfação, das indulgências que
se ganham, mas oferecendo-as por inteiro pelas santas esposas do nosso
amadíssimo Redentor, que gemem entre os mais cruéis sofrimentos.
O primeiro fruto que colheremos será o acréscimo de
merecimentos. Das três prerrogativas que Deus
concede às boas obras dos justos, a saber, o merecimento, a impetração e a
satisfação, a maior é o merecimento, pois nos torna mais agradáveis a Deus,
estreita os laços da nossa amizade com Ele, atrai-nos graças mais abundantes, e
prepara-nos assim maior glória no céu. E', pois, evidente que quem chegar a
converter a satisfação, preço das suas boas obras, em equivalente novo
merecimento, independente do mérito, que já houvesse adquirido e a mais desse
mérito, muito lucrará nesta troca. Estabeleçamos esta verdade com outro
raciocínio. O bem da glória dos bem-aventurados é, sem comparação, muito mais
real, muito maior do que o mal dos sofrimentos do purgatório; por consequência,
o direito a um aumento de glória vale mais que o direito a uma diminuição de
pena. Ora, aquele que oferece pelas almas do purgatório as satisfações das suas
boas obras e as indulgências ganhas faz precisamente a troca de que falamos,
converte essas satisfações em méritos. Nesta caridade encontra-se um ato
heroico de virtude, que confere ao seu autor a vida eterna, cousa que a
satisfação não pode fazer, a não ser convertida em merecimento. Este ponto
exige alguma reflexão, além de que, como dissemos, a gloria do céu é um bem
maior que o mal do purgatório, devemos lembrar-nos que um aumento de glória é
cousa eterna, enquanto que um alívio de sofrimentos do purgatório é passageiro,
como o próprio purgatório, de sorte que a distância entre o aumento de glória e
o refrigério dado aos sofrimentos do purgatório é infinita. O gozo dos bens
eternos, mesmo no ínfimo grau, não seria comprado demasiadamente caro pelos
sofrimentos e males temporais mais violentos. Devemos acrescentar que em todas
as cousas se deve fazer o que é mais agradável aos olhos de Deus, não buscando
o que melhor conviria aos nossos interesses e gostos, mas o que mais apraz ao
Senhor. Vale mais agradar a Deus que evitar sofrimentos. Ora, um indivíduo que
arrecada para si as satisfações e as indulgências que pode ganhar, não tem em
mira senão poupar-se a sofrimentos, ao passo que quem as oferece todas em
benefício das almas do purgatório torna-se por este mesmo facto mais querido de
Deus, pelo requinte de amor que brilha neste ato heroico de misericórdia e de
caridade, que não era obrigado a praticar, mas que faz por um rasgo generoso da
sua vontade livre.
As
santas almas do purgatório não podem tirar nenhum proveito dos seus
sofrimentos; o tempo de merecer passou para elas; e enquanto gemem naquele
lugar de dores, a Jerusalém celeste conserva-se privada dos seus habitantes, e
a Igreja, na terra, também privada de protetores que intercedam por ela junto
de Deus. Daí um segundo fruto da
nossa devoção. Aquela alma, a quem nós abrimos as portas do purgatório,
contraiu conosco uma obrigação especial, em primeiro lugar, por causa da glória
cuja posse lhe abreviamos, e depois, por causa dos terríveis sofrimentos a que
a arrancamos. Portanto, é para ela um dever obter para os seus
benfeitores as graças e bênçãos de Deus. Os bem-aventurados sabem quanto é
grande, infinito, o benefício que receberam; e como são essencialmente gratos,
esforçam-se por mostrar um reconhecimento proporcionado a felicidade que fruem.
Assim, quem oferece as indulgências que ganha em favor das almas do purgatório,
tem nestas outros tantos agentes, no céu, a cuidar dos seus interesses eternos;
e muito melhor é assegurar a salvação nesta vida, por meio das graças obtidas
pelos nossos protetores celestes, do que nos subtrairmos ao perigo de mais
demorada permanência no purgatório, por havermos dado a outros o fruto das
nossas indulgências. Mas não
adquirimos só um direito a benevolência das almas que libertamos; obtemos
também o amor dos seus anjos da guarda e dos santos pelos quais essas almas
tiveram uma devoção especial; ao mesmo tempo tornamo-nos mais queridos do
Coração de Jesus, pelo prazer que experimenta com a libertação da sua cara
esposa e com a sua entrada na alegria do céu.
Podemos ainda colher desta devoção um terceiro fruto
não menos útil para nós. E' uma grande felicidade termos
alguém no céu, que ame, louve e glorifique a Deus por nós. Quem tem por Deus um
amor terno e fervoroso não pode abster-se de empregar todos os esforços para
que a Majestade divina seja exaltada e glorificada, mas por causa dos nossos
pecados e das misérias desta vida, não nos é possível render a esta adorável
Majestade as homenagens e o culto perfeitos que os bem-aventurados lhe prestam
no céu. Que alegria e consolação não devemos pois sentir ao pensar que outros,
arrancados pelas nossas orações às chamas do purgatório, desempenham por nós
este sublime dever; e que enquanto nós penamos ainda neste mundo, eles entoam
já no céu o cântico dos louvores eternos! Certamente não há nenhuma alma no
purgatório que não seja mais santa que a nossa e mais própria para glorificar a
Deus. Por isso, quando
introduzimos uma alma no céu, proporcionamos com ela mais gloria a Deus do que
nós mesmos lhe podemos dar aqui na terra. Enquanto comemos,
bebemos, dormimos e trabalhamos (ó delicioso pensamento!), há no céu uma alma,
ou almas, apraz-me crê-lo, às quais apressamos a felicidade, e que adoram,
glorificam sem cessar a Majestade e a Beleza do Altíssimo, com uma perfeição
indizível.
Ainda não é tudo. Esta generosa devoção produz um
quarto fruto: faz rejubilar ao mesmo tempo a Igreja militante e a Igreja
triunfante. Grande é a festa no céu quando
um eleito vai engrossar o número dos seus habitantes; pois se os santos veem
com transportes de alegria a penitencia de um pecador, que aliás pode voltar a
cair no crime, qual não deve ser o seu prazer quando recebem em seu seio um
novo cidadão que já não tornará a ofender a Deus! O seu anjo da guarda rejubila
também e recebe mil felicitações dos espíritos bem-aventurados, pelo êxito com
que desempenhou as suas funções tutelares. A alegria expande-se entre os
santos, principalmente entre aqueles a cujo patrocínio esta alma estava
especialmente confiada, e entre os seus parentes e amigos, ao feliz coro dos
quais vai reunir-se, Maria rejubila igualmente pelo bom resultado das suas
repetidas preces, ao mesmo tempo que Jesus enceleira com amor e complacência a
madura messe do seu precioso sangue. O Espirito santo digna-se rejubilar com o
triunfo dos seus dons e inspirações inumeráveis, e o Pai Eterno compraz-se na
perfeição a que chegou a criatura de sua escolha, com a qual usou por tanto
tempo de longanimidade. A Igreja militante também tem a sua parte de alegria,
porque obtém um novo advogado. Os parentes, os amigos, a família desta alma
para sempre feliz, a freguesia, a nação a que ela pertencia, todos têm motivo
para rejubilar com o seu triunfo. Direi
mais, todo os predestinados e toda a natureza encontram motivo de júbilo na
entrada de um eleito no seio do seu Criador.
Mas podemos ainda colher um quinto fruto desta nossa
devoção. O amor não sofre delongas. Poderíamos então deixar
permanecer inútil, durante largos anos talvez, um tesouro que pode servir
perfeitamente para a gloria de Deus e para os interesses de Jesus? Talvez não
tenhamos necessidade, presentemente, das nossas satisfações nem das nossas indulgências.
Mas se as escondemos no tesouro da Igreja, quem sabe quantos anos decorrerão
sem que as nossas riquezas possam ser utilizadas, admitindo mesmo, com Lugo,
que todas as satisfações dos santos serão aplicadas antes do dia do julgamento?
[1] Ah! Por que não havemos de pôr desde já este dom ao serviço de Deus,
abrindo quanto antes as portas do purgatório a algumas santas almas, que
começarão, hoje mesmo talvez, o seu delicioso sacrifício de louvores eternos?
Finalmente, acrescentarei que aquilo que damos
redunda abundantemente em nosso proveito, e este é o sexto fruto da nossa
devoção. Em primeiro lugar, o próprio
ato de tão grande e generosa caridade é por si mesmo uma satisfação pelos
nossos pecados; pois se uma esmola dada para socorrer uma necessidade material
satisfaz mais que a maior parte das outras boas obras, qual não será o poder
destas esmolas espirituais? Depois, quem sacrifica alguma cousa pela glória de
Deus recebe recompensa centuplicada. O Senhor nos concederá pois tais graças,
de modo que apenas teremos uma pequena demora no purgatório, ou talvez inspire
a outros fieis o pensamento de orarem por nós. De maneira que, se houvéssemos
guardado para nós mesmo as nossas indulgências, muito tempo poderíamos gemer
naquelas chamas vingadoras, enquanto assim, se por inspiração de Deus outros
tratarem de ganhar indulgências para nós, entraremos muito mais depressa na
glória celeste. E’ um axioma, que
nada se perde quando se perde por Deus. Quando estivermos no
purgatório, os bem-aventurados a quem apressamos a hora do triunfo verão em nós
os seus benfeitores, e na nossa libertação uma dívida que a justiça lhes impõe.
Por outro lado, não serão só eles a reconhecer esta dívida, e Nosso Senhor os
ajudará a saldá-la.
Assim,
dando todas as nossas satisfações, todas as nossas indulgências às almas do
purgatório, longe de transtornarmos a ordem natural da caridade, servimos deste
modo os nossos mais caros interesses. E’ uma devoção que promove singularmente a glória de Deus, favorece no
mais alto grau os interesses de Jesus, e se inspira no amor das alma: abrange
simultaneamente a Igreja militante, a Igreja purgante e a Igreja triunfante.Bendigamos
Deus por nos haver concedido, em sua incompreensível liberalidade, o
inestimável benefício de dispormos a nosso alvedrio das nossas indulgências e
satisfações. E visto que nos
pertencem, que podemos usar delas como mais nos agrade, alegre-se o nosso
coração empregando-as em aumentar a gloria de Deus e em fazer abençoar o seu
nome.
Vede
até onde chegaram neste particular alguns grandes servos de Deus. O Padre
Fernando de Monroy, homem eminentemente apostólico, fez à hora da morte uma
doação por escrito, pela qual transferia para as almas do purgatório todas as
missas que houvessem de ser ditas por sua alma, todas as penitencias oferecidas
em seu benefício e todas as indulgências que para ele viessem a ser ganhas, Bem
podia fazer esta doação, pois quase se não tem necessidade de semelhantes
socorros quando se tem tido por Deus um amor tão delicado, quando se abraçaram
os interesses de Jesus com tanto ardor como o último ato deste piedoso
religioso nos leva a presumir que ele fez. “O amor é forte como a morte; as
águas do mar veem quebrar-se contra a caridade, e as suas ondas não a podem
submergir” [2]
Agora
vedes claramente o que vos peço. E’ necessário servir a Jesus dum modo ou de
outro, sem o que não podeis salvar a vossa alma. Estais completamente sob a sua
descendência. Não podeis fazer cousa alguma sem n’Ele terdes fé, sem
recorrerdes aos méritos da Sua Vida, da Sua Morte, do Seu Sangue; sem a Sua
Igreja e Seus Sacramentos. Não podeis dar um passo para o céu sem o Seu
auxilio. Cada uma das vossas ações, dos vossos pensamentos, das vossas palavras
não tem valor senão pela sua união com os merecimentos d'Ele. Não se pode
conceber dependência mais completa, mais absoluta, mais constante, mais
indispensável que a vossa dependência d'Ele. Portanto dum modo ou de outro, é
necessário que sirvais a Jesus. A questão agora é saber se não vale mais
servi-lo por amor. Qual tem sido até hoje a vossa maneira de o servir? Não
tereis acaso cumprido os vossos deveres para com Deus como um pobre que paga
uma dívida a um credor rico e que, a cada moeda que lhe vai passando para as
mãos, espreita de soslaio a fisionomia do seu credor, para ver se este homem
está realmente resolvido a esquecer a pobreza do seu devedor e a aceitar-lhe o
pagamento integral da dívida? O
vosso problema não terá sido encontrar o meio de chegar ao céu com o menor
trabalho possível? Não tereis esmiuçado os mandamentos, truncado os preceitos,
interpretado as regras, pedido dispensas? Com franqueza é a isto que chamais a
vossa religião, o vosso culto a um Deus Encarnado, que levou o amor até à
loucura, até se fazer amarrar ensanguentado ao patíbulo da cruz?
Pois
eu entendo que servir a Jesus por amor é muito mais fácil do que servi-lo
assim. Cousa alguma é fácil quando se não faz de boa vontade. A vossa religião
tornou-vos felizes? Oh! não; pelo contrário foi para vós um fardo pesado; e se
não fosse esta alternativa – o céu ou o inferno – há muito tempo que vos
teríeis desembaraçado dela. Mas o céu e o inferno são fatos, lá estão, não há
para nós meio termo. Ora, visto que é necessário sermos religiosos, eu sou pela
religião que nos faz felizes. Não
vejo a utilidade de me impor um culto penoso, se Deus me dá a escolher. Mas
Deus faz mais: deseja que a minha religião me faça feliz; sim Ele quer que a
religião seja o sol que alegre a minha vida. Mas uma religião, para
fazer alguém feliz, deve ser uma religião de amor. O amor torna tudo fácil.
Assim, a minha felicidade não depende senão de Jesus. E' a minha religião que
me dá dias felizes. Se servir à Jesus por amor fosse cousa difícil, prodigiosa,
como a contemplação dos santos, ou as suas austeridades, então o caso seria
diferente. Mas realmente não é nada disso. Servir a Deus por temor de ir para o
inferno e por desejo de ir para o céu, é cousa excelente, sem dúvida, e obra
sobrenatural; mas é difícil. Pelo
contrário, é tão suave servir a Deus por amor, que mal se explica como tanta
gente neste mundo deixa de o fazer. Pobres almas, cegas até ao prodígio!
Mas
uma felicidade ainda maior, é que tornando-nos felizes a nós mesmos, também
fazemos feliz Nosso Senhor. Este pensamento aumenta a nossa alegria a ponto de
quase não nos podermos conter, e isto é uma nova origem de contentamento para
Jesus. E’ assim que a religião se torna cada vez mais agradável. A vida é uma
extensa felicidade quando nela se cumpre sempre a vontade de Deus, e todos os
momentos são empregados para glória Sua. Se vos identificais com os interesses
de Jesus; se os abraçais como se fossem os vossos, como realmente são, penetra
em vós o seu espirito, estabelece no vosso coração o seu trono, aí se coroa, e
depois, com uma infinita meiguice, proclama-se rei do vosso coração. Uma amável
conspiração lhe entregou o cetro, e durante todo este tempo nunca suspeitastes
que o amor divino mirava a este fim. Entretanto, é assim. A glória de Deus
torna-se-vos cara, tudo quanto diz respeito a Nosso Senhor é agora o vosso
fraco, é como que a menina de vossos olhos sentis-vos atraídos para a salvação
das almas porque é a sua obra predileta, e todas as vossas inclinações, todos
os vossos gostos tomam este partido. Assim vão correndo as cousas, assim ides
vivendo (não digo bem: vós não viveis, é Cristo que em vós vive) e assim
morreis. Contudo, nunca vos passou pela ideia que éreis um santo, ou que vos
aproximáveis da santidade. A vossa vida oculta-se em Deus com Jesus Cristo, mas
é mais oculta para vós do que para os outros. Vós um santo! Semelhante
pensamento vos faria rir, se não assustasse a vossa humildade. Mas, ó profunda
misericórdia de Jesus, qual não será a vossa surpresa no dia do julgamento, ao
ouvirdes a consoladora sentença pronunciada por sua boca, e ao verdes a
brilhante coroa que Ele vos preparou! Só surpresa? Quase vos sentireis
impelidos a discutir a vossa salvação! Nosso Senhor atribui esta linguagem aos
escolhidos, no sagrado Evangelho: — “Senhor, quando foi que vós tivestes fome e
eu vos dei de comer? Quando foi que tivestes sede e eu vos dei de beber?” Não
podem compreendê-lo. Nunca pensaram que o seu amor tivesse tanta grandeza. Ah!
servi, pois, a Jesus por amor; e por muito que façais, sabei que nunca O
amareis tanto como Ele vos ama. Repito-vos, servi a Jesus por amor. Se
seguirdes o meu conselho, eu ouso prometer-vos, que antes que vossos olhos se
fechem, antes que o palor da morte tome o vosso rosto, antes que se certifiquem
aqueles que rodearem o vosso leito de que exalastes o último suspiro, já vós
tereis ouvido com surpresa, entre os cânticos dos Anjos, a sentença favorável
do vosso amoroso Jesus, e a glória de Deus começará a brilhar para vós com um
esplendor eterno!
_____________
Tudo por Jesus, Pe. W.F. Faber, trad. portuguesa, H. Garnier,
Livreiro-Editor, s.d.
[2] Cant. VIII, 6, 7.
http://angueth.blogspot.com.br/2013/02/seis-vantagens-da-aplicacao-das-nossas.html#more
Nenhum comentário:
Postar um comentário